domingo, 24 de setembro de 2017

Boca do Inferno: Reductio Ad Portugalum

É possível que, no limite, Tancos não exista – e mesmo Portugal, por absurdo, pode ser um produto da nossa imaginação. Mas em princípio não é, porque ninguém conseguiria inventar isto.


É um quadro de Werner Buttner: tem um copo, uma escova de dentes, uma bisnaga de pasta dentífrica e uma espingarda. Por baixo, a legenda: “Cuida tus dientes como tus armas”. Se o ministro da Defesa segue o conselho do pintor, temo pelo seu hálito. Caso dedique aos dentes o mesmo cuidado que dedica às armas, Azeredo Lopes não sabe quantos dentes tem, onde estão, nem o estado de conservação em que se encontram. Há jornais espanhóis que sabem mais sobre os seus dentes do que ele próprio.

Numa recente entrevista, a propósito do furto das armas do paiol de Tancos, o ministro disse: 
“No limite, pode não ter havido furto nenhum. Como não temos prova visual nem testemunhal, nem confissão, por absurdo podemos admitir que o material já não existisse (…)”. Ora, quando a tropa permite que lhe roubem as armas, já estamos perante uma situação absurda. Tenho dúvidas de que ensaiar raciocínios que reduzem ao absurdo ocorrências absurdas seja filosoficamente possível. Gera-se uma concentração de absurdo que não pode fazer bem à saúde. O absurdo devia ser o sal da conversa: uma pitada de absurdo num argumento com pés e cabeça entretém e até ilumina; considerações absurdas sobre ocorrências absurdas são bastante menos proveitosas e costumam ser expendidas em sanatórios.

Sísifo empurra a pedra montanha acima; depois, a pedra volta a rolar para o sopé, e Sísifo começa tudo de novo. Isso, já foi assinalado, é absurdo. No entanto, se Sísifo se puser a conjecturar que, no limite, a pedra talvez não exista e que, por absurdo, a montanha pode nunca lá ter estado, a gente questiona a saúde mental de Sísifo. Uma coisa é executar repetidamente uma tarefa que se sabe ser desprovida de sentido; outra coisa é estar armado em parvo. Higino não falaria dele, e Homero arranjaria maneira de o expulsar da Odisseia.

Quando, em Julho, o Presidente da República visitou Tancos, disse: “Não podemos, em matéria de furto de material militar, ter furtos desta dimensão. Há que prevenir para que não volte a acontecer”, e acrescentou: “É preciso investigar se há alguma ligação entre este furto e furtos que têm acontecido nos últimos dois anos em países membros da NATO”. O ministro Azeredo Lopes, que o acompanhou, não disse (mas deveria ter dito) que não havia nada para prevenir, e que subsistiam dúvidas de que houvesse algo para investigar. É possível que, no limite, Tancos não exista – e mesmo Portugal, por absurdo, pode ser um produto da nossa imaginação. Mas em princípio não é, porque ninguém conseguiria inventar isto.

Fonte: Visão

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