sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Há conflito de interesses na actividade de muitos deputados

Os privilegiados

Jornalista investigou durante oito meses as actividades paralelas dos deputados e os cargos dos ex-políticos nas empresas do PSI20

Pacheco Pereira disse que o livro de Gustavo Sampaio equivale a "uma grande reportagem jornalística" sobre os privilégios dos políticos e ex-políticos em Portugal. Em "Os Privilegiados", o jornalista Gustavo Sampaio - que trabalhou no jornal "O Independente" e na revista "Sábado", tendo publicado artigos no "Público" e na "Exame", entre outros - analisou exaustivamente o registo de interesses dos deputados em funções na Assembleia da República, a transição de ex-políticos para cargos nas empresas cotadas no PSI20 e as subvenções vitalícias a que têm direito, comparando ainda estas situações com as de outros países europeus.

Quem são os privilegiados em Portugal?

A classe política, os ex-políticos, os ex- -governantes. Não digo que seja só a classe política, mas é uma classe privilegiada. Sobretudo tendo em conta o discurso moralista do actual executivo sobre os portugueses, dizendo que têm vivido acima das suas possibilidades. Através da investigação deste livro pode perguntar -se se não é a classe política que tem vivido acima das possibilidades de Portugal. Não é tanto pelas remunerações ou pelas regalias - de que beneficiam de facto -, mas porque é que são ex-governantes a liderar grandes empresas? Pela sua competência e mérito ou pela sua influência e pelos seus contactos?

No livro opta por não fazer juízos de valor relativamente aos casos que apresenta. Porque fez essa opção?

Dou espaço ao leitor para tirar as suas conclusões. Fiz isso por respeito ao leitor e para o levar a pensar. Tive em conta o paradigma clássico do jornalismo que não é opinar, é mais informar e contextualizar e levar a reflectir sobre os assuntos. Também aconteceu porque foi uma investigação para a qual parti sem ideias pré- -concebidas.

Quanto tempo demorou essa investigação?

Cerca de oito meses. Já tinha abordado alguns destes temas em artigos para a "Sábado" e para a "Exame". O livro permitiu-me fazer uma actualização e um aprofundamento da investigação. Acabei por descobrir que alguns deputados tinham omitido informação super-relevante. Permitiu-me também fazer uma análise, já com algum tempo decorrido da legislatura, e chegar à conclusão de que alguns deputados diziam que não havia conflitos de interesses entre a sua actividade parlamentar e a sua actividade profissional, mas através das suas intervenções na Assembleia da República deparei-me com claros indícios desse conflito. Comprovei que eles existem de facto na actividade parlamentar de muitos deputados, que apresento no livro.

Escreve sobre deputados que fazem parte de determinadas comissões parlamentares e ao mesmo tempo têm participações em empresas nos sectores que essas comissões fiscalizam. O que é que isso diz sobre a comissão de Ética, que deveria fiscalizar a existência destes conflitos de interesses?

A comissão não tem punido nenhum destes casos. Desde logo porque a lei é demasiado permissiva e porque a comissão de Ética é pouco pró-activa. Um dos casos que apresento é o da Construtora do Caramulo. Da primeira vez que falei com o deputado do PSD António Leitão Amaro [actualmente Secretário de Estado da Administração Local], que detém 14% da empresa, fiquei com a impressão que até seria uma empresa ligada às obras públicas. Depois voltei a investigar e descobri que é um nome ilusório porque se desdobra em participações numa rede de empresas ligadas a dirigentes do PSD, nomeadamente o pai do próprio deputado. Havia ligações a empresas de energia eólica ao mesmo tempo que este deputado estava na comissão do Ambiente. A comissão de Ética não investiga, não vai à procura?

Mas a maior parte do que apresenta no livro é tirado de fontes públicas ao dispor de qualquer um?

Falei com o deputado Mendes Bota [presidente da comissão de Ética] e ele disse--me que não são pró-activos na investigação. Talvez investiguem se houver denúncias. Outro problema é que a comissão é constituída por deputados e trata-se de uma situação de autofiscalização. Mesmo que as pessoas tenham independência para o fazer - o deputado Mendes Bota tem tido declarações corajosas, como quando disse que as sociedades de advogados tinham tomado de "assalto" os lugares de topo do parlamento -, é muito difícil fazê-lo dentro do sistema, dentro dos próprios partidos.

Mas encontrou irregularidades face à lei. Espera algum tipo de repercussões?

Há casos em que há indícios de deputados que estão a ferir a lei. Nomeadamente Miguel Freitas (PS), que a partir de determinada altura em que o governo de Sócrates ia cair e estava em gestão - ele acha que não estava em plenitude de funções, mas eu fui ver à lei e os deputados mantêm-se em plenitude de funções até haver novas eleições - e tornou-se sócio gerente de uma empresa, com uma participação superior aos 10% permitidos pela lei, que firmou um contrato com o Governo Regional dos Açores para a concepção de um plano regional de desenvolvimento. Há indícios claros de ilegalidade. Não sei o que poderia acontecer. Perder o mandato? Macário Correia perdeu o mandato actual por ilegalidades cometidas noutra câmara. Há também o caso de Ana Catarina Mendes (PS), que tem uma participação de 9,5% numa empresa de consultoria - e o seu marido, Paulo Pedroso, tem também uma participação que se desconhece - com contratos com o Estado. Os valores nem são os mais graves ou preocupantes, mas a lei está a ser desrespeitada. Encontrei muitos casos de participações entre 8% e 10%. A própria lei está mal feita, porque é diferente ter 10% de uma livraria ou 10% de uma grande empresa.

Encontrou 117 deputados em 230 que mantêm outros trabalhos para além da actividade parlamentar. Do que investigou, acha que é possível compatibilizar a vida profissional com as exigências do trabalho na Assembleia da República?

Fiz entrevistas a deputados estrangeiros (suecos, dinamarqueses e britânicos) e perguntei-lhes se havia uma lei mais restritiva nos seus parlamentos quanto a conflitos de interesses e incompatibilidades face a actividades paralelas. Todos me responderam que nem sequer há lei. Disseram que isso é extremamente invulgar porque não têm disponibilidade para outras actividades. O trabalho parlamentar ocupa-lhes sete dias por semana. A maioria não se lembrava de nenhum caso. Isso levanta a questão da razão por que em Portugal há deputados com três ou quatro actividades paralelas. É estranho. O leitor, relativamente aos dados apresentados no livro, tirará as suas conclusões.

No que diz respeito a outras incompatibilidades, com ex-governantes a assumirem cargos de destaque em empresas do PSI 20 pouco tempo depois de abandonarem o poder político, conseguiu compreender porque é que isto acontece?

Tentei dar duas perspectivas dissonantes. Seria fácil encontrar 30 opiniões que considerassem esses ex-políticos corruptos. Ouvi opiniões diferentes. João César das Neves, professor na Faculdade de Economia da Universidade Católica, levanta a hipótese de que os governantes serem convidados por causa da sua influência política ao mesmo tempo que Maria do Carmo Seabra, professora da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, fala mais num know-how e numa experiência que ganham e que pode ser útil para as empresas, não numa perspectiva de tráfico de influências. Na pesquisa que fiz sobre as 20 empresas do PSI20, 16 têm ex-governantes em 28 cargos de administração e 32 nos restantes órgãos sociais. E não é uma listagem exaustiva. Levanta a questão de estes ex-governantes serem contratados pelas empresas pela sua experiência e mérito na gestão de empresas ou por causa da sua rede de contactos.

Surpreendeu-o a facilidade com que estes ex-governantes passam de cargos públicos para cargos em empresas e depois dentro dessas empresas transitam entre várias posições?

Não posso dizer que essas transições me surpreenderam. O que me surpreendeu mesmo foi o número. Apenas quatro empresas do PSI20 não têm qualquer ex-governante nos seus órgãos sociais e conselhos de administração.

Encontrou alguns casos em que o período de nojo de três anos entre cargos públicos e cargos privados não foi cumprido?

Não há fiscalização, se bem que os casos mais graves que encontrei e também os mais mediáticos cumpriram de facto o período de nojo. Ferreira do Amaral para a Lusoponte, Jorge Coelho para a Mota-Engil e Pina Moura para a Iberdrola respeitaram o período de nojo. Pina Moura entrou para a Iberdrola dois ou três dias depois de terminar esse período. A questão é se passado esse período de nojo deixa de haver dúvidas entre estas transições do governo para empresas cuja actividade está centrada em contratos celebrados quando estas pessoas eram ministros. Um dos exemplos é a Lusoponte, em que foi Ferreira do Amaral, enquanto ministro das Obras Públicas, que acordou o contrato de exploração das pontes sobre o Tejo e detém direitos sobre a terceira travessia, que ainda nem foi construída. Onde é que há uma linha a separar os negócios das empresas? Porque é que a Mota-Engil vai buscar ex-ministros das Obras Públicas e porque é que os seus ex-secretários de Estado também vão lá parar?

Mas verificou que muitas vezes quem deveria regular certos sectores da economia é também nomeado pelo poder político.

Os próprios reguladores, que deveriam ser independentes e servir de contrapeso a esta promiscuidade, estão pejados de ex-políticos. Na maior parte dos casos das entidades reguladoras, muitos dos ex-políticos - muitas vezes ex-assessores de governantes - não têm a mínima competência para os cargos que foram ocupar. Acabam por ocupar cargos importantíssimos na economia e na actividade das empresas e aqui levanta-se a questão do porquê de irem para lá. A perspectiva que se pode ter é que são tachos e têm grandes salários e nisso são privilegiados, mas a perspectiva que tento dar com o livro é o que é que eles fazem e porque vão para lá? Há depois uma interligação entre estas empresas e os partidos através de trocas de favores. Há uma névoa à volta disto que é extremamente preocupante.


Casos:

Joaquim Ferreira do Amaral, ex-ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações

Formado em Engenharia Mecânica, Ferreira do Amaral começou por ser escolhido para secretário de Estado das Indústrias Extractivas e Transformadoras em 1979.

Filiou-se no PSD em 1981. Foi desempenhando variados cargos em sucessivos governos, chegando a ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações em 1990, num executivo de Cavaco Silva. Foi no seu mandato que a concessão, construção, financiamento e exploração da Ponte Vasco da Gama foi atribuída à Lusoponte. A empresa tem também direitos sobre a terceira travessia do Tejo. Tornou-se presidente do conselho da administração da Lusoponte em 2005.

Jorge Coelho , antigo ministro do Equipamento Social

Jorge Coelho demitiu-se do governo em 2001, logo após a queda da ponte de Entre-os-Rios. Era então ministro do Equipamento Social (equivalente às Obras Públicas), com um largo currículo político quer nas campanhas do PS, quer em cargos governativos, sendo um homem da cúpula do partido. Em 2006 passou a dedicar--se em exclusivo à actividade profissional e passados dois anos foi anunciado como CEO da Mota-Engil, empresa que durante o seu mandato como ministro do Equipamento Social tinha recebido duas concessões de auto-estradas Scut através de concursos internacionais. Coelho saiu do cargo no princípio deste ano.

Joaquim Pina Moura, antigo ministro da Economia e das Finanças

Pina Moura começou a sua carreira política no PCP, mas em 1992 criou a Plataforma de Esquerda, aproximando-se do Partido Socialista. Em 1999 – após já ter sido secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro e responsável pela Economia – foi nomeado ministro das Finanças e da Economia de António Guterres. Nos seus mandatos abriu o capital das empresas de energia do Estado

– REN e EDP – às empresas estrangeiras. Desde 2004 Pina Moura é presidente da Iberdrola Portugal, cargo que chegou a acumular com o de deputado à Assembleia da República. A Iberdrola deteve até ao ano passado 6,79% da EDP.

Fonte: iOnline

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