Todo o grupo social precisa de transmitir a sua experiência acumulada no tempo à geração seguinte, como condição da sua continuidade histórica. O facto de os membros individuais do grupo estarem sempre a renovar-se, seja pela morte, seja pelo nascimento, dinamiza a necessidade de que essa experiência acumulada, que se denomina saber e existe fora do tempo individual, fique organizada numa memória que permaneça no tempo histórico. A questão está em saber se é mais útil para a reprodução do grupo que os novos reproduzam o saber; ou que entendam a necessidade dele por meio de praticar a sua utilidade. O primeiro seria ensinar o que já se tem, subordinada à letra do que já se possui como explicação da natureza e das relações entre os homens; o segundo seria aprender o processo que dinamiza as operações pelas quais a mente humana resolve uma questão cada vez uma problemática se lhe coloca.
1. A questão
Todo o grupo social, como condição da sua continuidade, precisa de transmitir à geração seguinte a experiência acumulada no tempo. O facto de os membros individuais do grupo se estarem sempre a renovar, seja pela morte, seja pelo nascimento, dinamiza a necessidade de que essa experiência acumulada, que se denomina saber e que existe fora do tempo individual, fique organizada numa memória que permaneça no tempo histórico. Nos grupos sociais onde existe uma predominância da memória oral, o saber ou conhecimento materializa-se na sistematização ou classificação dos seres humanos em genealogias e hierarquias; nos grupos sociais onde predomina a memória escrita, o conhecimento materializa-se em textos que consignam factos e que são sujeitos de interpretação. Normalmente, a morte leva parte do saber reproduzir uma genealogia e da capacidade de entender uma hierarquia, ao mesmo tempo que leva a capacidade de entender o contexto que produz o texto e que originou o seu conteúdo. Normalmente, quem nasce e chega a um grupo social, encontra-se já com um conjunto de taxonomias com as quais convive e que, enquanto cresce e se desenvolve, não coloca em questão porque não as entende: obedece e respeita as que já existem e não se sabe porquê. O processo educativo é, em consequência, o meio pelo qual os que já têm explicitado na sua memória pessoal o como e o porquê da sua experiência histórica tentam retirar os mais novos da inconsciência do seu saber daquilo que é percebido sem que seja explícito; e procurar inserir os mais novos nas taxonomias culturais. A questão está em saber se é mais útil para a reprodução do grupo que os novos reproduzam o saber, ou entendam a necessidade dele ao praticar a sua utilidade. O primeiro seria ensinar o que já se tem, subordinado à letra do que já se possui como explicação da natureza e das relações entre os homens; o segundo, seria aprender o processo que dinamiza as operações pelas quais a mente humana resolve uma questão, cada vez que uma problemática se lhe coloca. Na primeira modalidade, o processo educativo seria uma reiteração do que já se tem, enquanto na segunda seria a formação de uma estrutura de pensamento que pode entender as alternativas da resolução das questões colocadas pelo processo da vida. Normalmente, ensino e aprendizagem são processos que se acompanham um ao outro durante todo o processo educativo. Denomino ensino a prática de transferir conhecimentos provados ou acreditados pela população que educa à população que se estima desconhecer as formas, estruturas e processos que ligam as relações sociais com as coisas: a prática de fixar o estereótipo do social, seja resultado da investigação ou da ideologia, é a que predomina ainda no processo educativo cristão e muçulmano. Chamaria a isto o respeito à lei, bíblica ou positiva, porque assim está escrito. Denomino aprendizagem – como tenho discutido com P. Freire e J. Goody – a prática de colocar questões por parte da população que ensina, que envolvem alternativas de respostas, à população que começa a entender o funcionamento do mundo, onde a resposta a encontra o iniciado, não sendo a sua atividade substituída pelo iniciador. No ensino que conheço, o iniciador tende a substituir a atividade do iniciado, seja na atividade direta, seja na obrigação do aprendiz fazer como lhe é dito, imitando. Na aprendizagem, a iniciativa é de quem é introduzido ao mundo histórico em que o seu grupo já vive, sendo a atividade de quem orienta um mostrar alternativas e as suas consequências, ficando a opção com quem aprende. Quanto a aprendizagem é de textos, a prática do processo educativo será a de que se saiba classificá-los, conhecer o seu contexto, o debate em que está inserido e a questão relativa às ideias que transmite, mesmo quando se trata de textos de introdução à técnica da escrita onde o melhor será sempre o que produz o próprio aprendiz. O ensino é repetir, criando uma subordinação; a aprendizagem é descobrir, criando uma relação de comunicação.
Na prática educativa escolar ocidental, estas estão separadas. Tal é causado pela conceptualização da criança como aquele ser humano que nada sabe nem entende e deve ser preparado para repetir o que fazem os adultos. A predominância da prática do ensino cria uma diferença na atitude dos membros individuais de um grupo.
Se um grupo social quer ver se procede recorrendo ao ensino ou à aprendizagem, quer dizer, se forma repetidores onde a variabilidade histórica é pequena, ou se forma entendimento onde se introduz uma compreensão dos factos, tem que examinar quais as instituições ou vias, onde educa, e quanto do saber acumulado na experiência quer transmitir e a quem.
2. Entre primitivos
Para os antropólogos, as sociedades primitivas contemporâneas são parte do acervo ou repertório onde ensaiamos a nossa metodologia mais importante, a da comparação. O texto mais importante em qualquer tribo ou clã é a genealogia, quer dizer, o conhecimento da ascendência e da descendência de cada indivíduo, isto é, o seu lugar na estrutura de relações: a quem pertence e para onde deve circular, bem como quais as suas obrigações e os seus limites no acesso ao conhecimento. A genealogia reparte as pessoas por entre a natureza, onde cada grupo totémico tem por missão entender o fenómeno do qual diz fazer parte. Ao entender a genealogia, entende o lugar que o seu totem ocupa na ordem que a natureza lhe ensina, tendo em consequência um lugar de maior ou de menor preponderância na estrutura tribal ou clânica. O chefe Kiriwina, na Melanésia, domina o saber da construção da canoa e a magia para que esta não só navegue, bem como para que, quando navegar, não afunde; o chefe Maori conhece o trabalho do bosque e a reprodução dos pássaros e dos peixes dos quais vivem as tribos que governa. Ambos os chefes não possuem um conhecimento pessoal de todo o saber que precede o produto final e que é de grande complexidade: há uma divisão social do conhecimento entre variadas pessoas que lhe dizem como é: cada uma destas pessoas é treinada, separada do seu grupo biológico de origem e transferida muito nova para grupos de iniciação. No grupo de iniciação, os indivíduos são observados quanto a capacidades e habilidades para decidir qual dos vários caminhos, conforme a sua pertença totémica, poderão seguir quando adultos. Cada jovem iniciado, isto é, educado, conhece na sua totalidade a parte do saber social para onde é endereçado pelo iniciador e entende o movimento e capacidade das coisas, animadas ou não, que lhe irá caber gerir quando adulto; no seu conjunto acabam por aprender e manter a totalidade do conhecimento tribal, com a proibição estrita de comunicarem ou referirem uns aos outros o que aprenderam: o tótem tem um tabu que impede o acesso a si àqueles que não pertencem a essa parte da natureza. Ao mesmo tempo, a mitologia e a prática de trabalho permitem o acesso à justificação desta divisão, bem como ao conhecimento comum pelo qual é justificada a divisão social do saber. Os fenómenos com os quais cada indivíduo deve lidar passam a ser como que explicações que derivam da própria experimentação dos mais velhos, é dizer, são fruto do processo de vida que se prática e que se deve enfrentar: o saber reprodutivo é local, património do que o conjunto do grupo sabe e gera como conhecimento. O que lega é a capacidade de compreender a estrutura do movimento das pessoas e das coisas, para que cada indivíduo possa mobilizar as suas capacidades e habilidades aprendidas, quando se confronta com uma natureza movível e mutável, até mesmo invadida por outros conhecimentos vindos de outras experiências e que não ajudam ao domínio da vida na qual estão inseridos. Na vida primitiva, as gerações que vão nascendo aprendem os máximos e mínimos da organização da vida natural, que, com a sua própria teoria, transformaram em cultura. Cada ser humano passa a ser construtor de uma parte dela com as ideias que lhe foram transmitidas.
Esta síntese da vida primitiva é feita aqui só para exemplificar uma prática de aprendizagem, onde a ausência da escrita na vida quotidiana coloca um forte peso no desenvolvimento de estruturas mentais porque não têm depois de um texto onde ir lembrar o que fazer quando a memória se esgota ou a conjuntura muda e fornece outros contextos. O ensino existe na vida primitiva. Por exemplo, entre camponeses, no processo ritual, na medida em que a informação deve ser transmitida primeiro. Mas o ritual não traduz signos, bem como símbolos que é preciso descodificar, isto é, entender. O signo escrito, que a cultura letrada tem também introduzido entre primitivos, tem de ser decorado porque ele é fixo e o seu significado não é polivalente. A memorização de só uma alternativa é o que fecha as estruturas mentais: o ritual, como o mito, pelo contrário, é agir e decorar várias alternativas para um mesmo objectivo, várias maneiras de fazer a mesma coisa, várias versões. Não é que a escrita seja negativa e a oralidade positiva, é a escrita como fim em si que transporta nela a desvantagem do signo fixo e fechado. A aprendizagem da combinação de signos com textos relativizados é, na vida ocidental, o que o entendimento do rito e do mito que a vida primitiva tem e faz, à força, desenvolver o entendimento e varrer a subordinação ao texto para centrá-la na hierarquia, ela própria uma incógnita a ser permanentemente entendida, para ser obedecida ou não.
3. Entre portugueses
Podia também dizer que entre qualquer povo que age a partir de ideias modelares, fundamentais, onde o real está abstraído em fórmulas que digam respeito ou não à sua reprodução, deve aprender, isto é, essas fórmulas são-lhe ensinadas. O texto fundamental do saber é o grupo social ele próprio, bem como o texto escrito. O texto escrito é produto da experimentação da parte do grupo social total que chegou a entender as regras da semântica e do discurso lógico indutivo-dedutivo. A divisão social do saber está estruturada pela possibilidade universal de ter acesso às instituições que retiram a mente do saber quotidiano com o objetivo generalizado do ganhar habilitações naquilo que cada um conseguir, conforme as capacidades financeiras numa sociedade onde o valor é moeda, suas alianças ou clientelas, ou possibilidade de ter nascido em grupos domésticos produtores de ideias e já manipuladores de textos. Os novos membros da sociedade são retirados do lar para serem ensinados num mesmo conhecimento, sem aferir grandes capacidades pessoais, habilidades ou ancestrais. O objetivo do processo educativo é treinar a nova geração nas técnicas da escrita e do entendimento de grafias, em conteúdos que explicam o movimento das pessoas entre si e das coisas a partir de modelos preparados por eruditos distantes da existência e vivência dos aprendizes. A aposta é feita na escrita, leitura e cálculo como um fim em si, onde os conteúdos se perdem nas dificuldades de entender a estrutura dentro da qual se deve exprimir o conhecimento. O conteúdo é uma verdade que não se experimenta, mas que se repete depois de enunciada pela autoridade de quem diz e da letra impressa. O debate das ideias, ou a técnica de debater ideias, fica submetido à memorização do que o instrutor ensina, onde a comparação textual e o contexto não são considerados importantes. O processo educativo consiste em reproduzir fielmente o saber que os eruditos do grupo social, aqui nacionais, têm produzido. Há duas contradições importantes que ajudam a que este ensino não sirva, não seja útil para a aprendizagem que permite entender o movimento, os processos que vão formando as estruturas da memória social. A primeira diz respeito à parte do saber social ser entre nós oralmente transmitido, porque também entre nós são utilizadas as genealogias e hierarquias baseadas em capacidades e habilidades para o entendimento do trabalho social. As instituições que ensinam o saber social desconhecem este facto, já que definem o saber social como o saber cientificamente produzido. O saber oral transmite, por meio do lar e do grupo de vizinhos e parentes, as lealdades e adesões que fazem do agir uma motivação para aprender. Uma segunda contradição do processo educativo é a sobreposição de duas formas de entender: a religião, que prepara, prega e pratica quotidianamente, com ou sem fé, com ou sem igreja, a solidariedade social. Esta é uma representação simbólica da união e do trabalho entre os homens com mais de três mil anos de idade histórica no ocidente, que a recolheu das tradições e práticas bíblicas dos judeus e da crueldade mitológica grega. A fé é uma outra contradição que define o nosso processo educativo: o desenvolvimento desde o século IV da ideia de indivíduo, que, dotado de razão, é livre para optar entre alternativas consideradas iguais para todos, é a origem da teoria económica que nos governa desde o século XVII.
4. Entre gerações
O processo educativo é o comportamento que mais marca o quotidiano das nossas vidas, e é o mais quotidiano dos processos que orienta o nosso agir. Seja como ensino, seja como aprendizagem, procura sistematizar o conjunto do dia a dia de todos os seres humanos de diversas idades que coexistem. Se bem que na sociedade primitiva há variabilidades que se refletem na diversidade com que os mitos são transmitidos, o ritual com que se aprende a comunicar símbolos fixos é que permite o entendimento e a experimentação do que o ritual ensina: é o processo pedagógico do saber que se explica. Mas, nas sociedades primitivas, como na europeia rural ou proletária, ou ainda numa pequena burguesia mais monetarizada que iluminada, o registo da variabilidade é, devido à técnica oral predominante, lenta. Nas sociedades eruditas, ou nas sociedades com eruditos, onde o método indutivo-dedutivo felizmente produz saberes provados que podem sempre experimentar-se outra vez, e onde há consciência que devem experimentar-se outra vez, estão sempre a surgir novas ideias que entram em contradição com outras, anteriores ou contemporâneas, donde a variabilidade é rápida, quase vertiginosa. Os ciclos individuais de vida ficam, assim, como os ciclos locais, atados, encadeados à estrutura do tempo definido pela descoberta científica. O processo educativo, cuja união com o tempo estrutural é feita pela teoria económica que nos governa – não com a qual nos governamos, mas que nos obriga a governarmo-nos com tudo –, está afetado por uma decalagem permanente no tempo. A nova geração que aprende dos seus pais, parentes e vizinhos, está a aprender diversas experiências históricas, diversas racionalidades, no ato único de educar-se.
No caso da maior parte dos países europeus, a reforma liberal da sociedade dinamizou mudanças que a geração que ontem ensinava, aprendeu a entender de seus próprios pais, parentes e vizinhos, uma prática de adesão ao seu saber; enquanto a geração que hoje ensina, precisa aprender na concorrência e na rutura. No caso português, a experiência liberal tentou ser encapsulada durante cinquenta anos, dentro da invariância histórica de uma unidade fabricada na base de um catolicismo que tentou congelar a experiência e governar com modelos fixos de classes sociais. Por muitas décadas, uma forte estrutura hierárquica fechou a mobilidade social, texto básico em todo o grupo que permite aprender comportamentos diversos, e prendeu as gerações a um ensino subordinante a uma verdade modelar única. A força das ideias acabou com esse modelo social para entrar rapidamente, sem transição quase, à concorrência e ao eclodir de classes sociais. No entanto, ficou a teoria dentro das mentes dos seres humanos que foram ensinados na unidade e na força do hierárquico que não divide o saber social, mas que impõe o dogma. Este facto histórico tem marcado o processo educativo a todo o nível, definindo-o como sendo de ensino porque se considera a criança suspeita de incapacidade de raciocinar pela aplicação do Direito Canónico no governo da nação, assim como a teoria estruturada no processo quotidiano de vida, incapaz de produzir conhecimento. A figura do professor, semelhante à do padre, passa a ser, a continuar a ser, a da autoridade da qual tudo se recebe e à qual há que obedecer. Emerge assim a figura de um mediador entre o saber dos eruditos do grupo social e o das crianças irracionais e dos adultos incapazes de se governar e entender o movimento da história que eles quotidianamente produzem, o professor. O professor sabe para onde é que a vida vai, e, com clarividência, incute este saber na instituição escola, isto porque assim nisso acredita e porque assim mesmo ele foi ensinado, separando esse saber da cultura à qual pertence e a cujos membros tem que ensinar. Enfim, a minha ironia, ao colocar esta questão, deriva do contacto com tanto professor convicto da verdade absoluta do seu saber, de tal forma que ficam de fora do campo social. O professor, essa profissão que tem sido ensinada a substituir gerações e conjunturas, e que, como todo o adulto que precisa de certezas para viver, encontra a sua no seu papel estratégico de ponte entre a ignorância do povo das matérias geradas pela investigação de outros e a sua própria ignorância de como o conhecimento é produzido. Aliás, de todo o professor, qual é a pessoa que vem ensinar? Do ciclo da vida que o leva ao Magistério, qual o saber aprendido desde o qual ensina? Se o professor trava o processo de aprendizagem entre gerações, pela sua figura charneira entre eruditos e aprendizes, e se, não sendo investigador, não aprende ele próprio o processo do quotidiano com que a existência é teorizada e vivida, deve ter um papel no processo educativo que ele gere.
5. A infância do professor
É verdade que o professor é um inocente filho da conjuntura histórica que o formou. É verdade também que a imagem do professor, derivada da figura monacal ou goliarda, é resultado da sua possibilidade de explicar, de trabalhar com as categorias da razão. O processo de vida quotidiana que forma as crianças é vorazmente emotivo: por exemplo a chantagem derivada do mito cristão da morte de um homem que assume na sua vida o erro de todos os demais, excepto o seu, e que é a base teórica da nossa cultura ocidental; ou a hipótese de teoria cultural ocidental. O processo educativo de pais, parentes e vizinhos, é baseado na dosificação do amor e da agressividade familiar, um facto que só podemos aceitar, pelo menos contextualizar para viver em paz. O professor trabalha com outras categorias, não fabricadas por ele, mas que lhe foram incutidas como teoria de afastamento para desenvolver mentes de lógica da prova. Não é que o professor não ame, deve é racionalizar a afetividade com que ensina. E, assim, não chega ao processo de liberar os aprendizes da sujeição à sua palavra e conhecimento: primeiro, porque deve transmitir a teoria oficial de saber não relacionada com a experiência da classe social e de técnicas passíveis de entender pelos mais novos; segundo, porque todo o indivíduo que ele forma deve ser cidadão, isto é, moeda do mesmo valor. Mas, é verdade também, e isso é evidente no agir do professor, que ele é filho, principalmente, da sua infância. O professor também aprendeu a ser com os pais, parentes e vizinhos, e, a partir desse quotidiano, aprendeu então, como seus alunos hoje, as categorias racionais do conhecimento. Assim como na sociedade totémica de cada grupo entende a parte da natureza com a qual se identifica analogicamente, também na sociedade de classes a experiência de trabalho do grupo doméstico, e seus associados, explicam ao seu «rebento» a sua perceção da vida. Essa perceção da vida é difícil de mudar, como se pode apreciar em dois factos: nas metáforas com que os professores ensinam o programa preparado pelos eruditos; e na dificuldade evidente nos factos e nas estatísticas de insucesso escolar, de transmitir o conhecimento erudito à próxima geração. O professor poderia mudar o seu quotidiano refletido no seu ensino, se ele próprio fosse um investigador que reproduz o que tenta entender na sua pesquisa. Mas, na sociedade de massas em que trabalha, o seu objeto de trabalho é definido como o de um artífice da escrita, leitura e cálculo, para o qual o conteúdo é um pretexto para desenvolver estilos literários como ditado, composição, ensaio, teste. A opção de quem movimenta o processo educativo é a de ensinar, porque não lhe é dada a oportunidade de experimentar, de pesquisar sobre o processo de dinamizar a aprendizagem. Assim, a infância do professor acaba por ser a teoria que marca essa única opção com a qual fica, um quotidiano que se impõe por saber as teorias que lhe são entregues. A análise de infância do professor, de toda a conjuntura em que nasceu, é a pista que nos faz falta para entender porque é que o processo educativo é mais marcadamente ensino e não aprendizagem. Isto é, foge dos símbolos culturais que, explicitados na consciência do aluno, permitiriam a compreensão por parte dos aprendizes do racionalismo científico manipulado pelos eruditos. Se o professor não investiga da mesma maneira que os eruditos, as alternativas do processo educativo ficam fechadas e o processo educativo sujeito aos seus símbolos aprendidos no quotidiano que marca a percepção dos factos durante a sua carreira burocrática. O processo educativo, ensino e aprendizagem, tem a forte componente de ensino com os conteúdos eruditos decorados, percebidos pela experiência do ciclo de vida do indivíduo que é professor e que elabora uma pedagogia a partir da sua experiência do dia-a-dia das aulas, do afastamento cultural com a população que ensina e, paradoxalmente, da sua interpretação de pais e crianças trazida do seu próprio quotidiano pré-profissional.
6. Outras culturas
Permita-me o leitor dar um pequeno rodeio por outras terras, essas que os antropólogos estudam fora do continente europeu, para comparar e relativizar o território português. Entre os povos que nós chamamos primitivos, e que são nossos contemporâneos, o conhecimento de como se relacionar com os outros, e o lugar que cada um ocupa na estrutura social, está determinado antes de um indivíduo nascer. O primeiro conhecimento que se incute a cada nova geração é o das hierarquias sociais, que começa logo pelas históricas, quer dizer, desta terra até às dos ancestrais que desde algum lugar fora da matéria observam e intervêm nos destinos dos vivos. Todo o indivíduo Tallensi, no Gana, como Meyer Fortes estudou (1949), sabe que o seu destino não depende da sua vontade, mas da arbitrariedade da divindade que passou a ser seu antepassado. Assim como todo Tallensi sabe que em caso de guerra (Fortes, 1940), não pode matar nem ferir pessoas do deu próprio sangue que, por lei da exogamia que governa a troca matrimonial, se encontrem entre o clã com que se batalha. Os meninos Baruya, da Nova Guiné (Godelier, 1982), sabem que um dia serão separados das sua mães para irem viver com homens na casa reservada a eles; o sobrinho do chefe Kiriwina, na Melanésia (Malinowski, 1922 e 1928), está advertido desde sempre que não pode brincar sexualmente com as mulheres jovens de seu tio, sob pena de ser expulso e perder a chefia, a terra e as suas relações. Enfim, uma mulher Maori, na Nova Zelândia (Firth, 1929), quando sai da casa dos pais para ir casar a outra casa, sabe que já que seu filho voltará um dia ao lar original a reclamar a herança da mãe e trabalhá-la. Este é o segundo conhecimento que se ensina a cada membro da tribo ou clã, de que há uma estrutura dentro da qual decorre o processo de vida, e que sair dela é o risco de não ser aceite no meio dos outros. Sem dúvida que tudo isto acontece dentro de signos e símbolos que permitem o entendimento das regras do convívio, assim como sob as ideias religiosas que estabelecem que se assim não agirem serão punidos até pelos outros seres humanos. Não há diferença entre estes comportamentos e os nossos, enquanto processo, embora existam enquanto conteúdo. A diferença não é de primitivo contemporâneo para civilizado contemporâneo: a diferença é, simplesmente, entre prática e prática dos povos conforme a sua experiência histórica. A questão que se coloca é como é que se chega a conhecer, quais as maneiras, conteúdos e processos que permitem que a memória social seja incutida e respeitada pelos membros dos grupos. É verdade que o saber se transmite, mas que saber é transmitido, por que procedimento, é o que interessa analisar. A resposta geral é que é a cultura – isto é, as formas de pensar a vida material e de interação -, a tradição, os valores, a autoridade, a instituição que ensina. Eu penso que, sobretudo, e já que existe a possibilidade de discordar, o que existe é um conjunto de conceitos partilhados por todos os grupos sociais de uma mesma cultura, que se impõem como aprendizagem a cada pessoa e que forma o processo educativo ao qual se adere, porque do entendimento individual e social depende a sua subsistência, coordenada com os outros, a felicidade e a permanência entre os seus.
7. Querer aprender
Depois de ter observado o processo educativo durante vários anos, e em culturas diversas, não tenho dúvidas de que toda a criança quer aprender. Até por que ganha com isso a aprovação dos adultos que a rodeiam. Mas, mais importante que isso, porque ao aprender entende o que se passa em torno de si. O processo educativo é, em consequência, mais amplo do que é o ensino em instituições especializadas. A primeira aprendizagem que procura a criança é a de distinguir pessoas. É evidente que, desde o seu nascimento, uma criança tem uma aproximação emotiva, pelo menos à pessoa que a cria e alimenta. O que eu quero referir aqui é a aprendizagem genealógica, entre pessoas com as quais se tem relações de subordinação, direitos e obrigações, e aqueles que é preciso evitar. A distinção genealógica leva à distinção entre os parentes e os que o não são, tais como vizinhos e amigos, adultos e pares, jovens e velhos, homens e mulheres. Daí, segue-se, apenas numa ordem convencional através do crescimento, a distinção do que cada um deles faz, qual o seu trabalho, o que parece ser o que a criança quer imitar. Em qualquer cultura, o que se quer aprender é altamente diferenciado: primeiramente, porque se o grupo é altamente hierarquizado, isto é, com pouca mobilidade, a criança será e é orientada para o trabalho da pessoa que depois vai substituir; se a sociedade é menos hierarquizada, e apesar de entender principalmente o que fazem os adultos com os quais convive, prática que tem grande influência na sua memória, uma criança pode ser orientada para conhecimentos diferentes daqueles do lar. Seja como for, na aprendizagem existe sempre o limite do que o grupo sabe, conhece e pratica, o que a nível universal resulta de sociedades e povos pescadores, pastores, caçadores, industriais e outros. É na medida da compreensão do que aí é feito, que quem está a aprender ganha ou não o respeito dos restantes. Respeito que é um estímulo para querer aprender: todo o pequeno ser que mostra conhecimento e entendimento, recebe também a aprovação dos demais. Na vida quotidiana, o processo educativo é funcional à incorporação dos mais novos nos afazeres do grupo, uma incorporação interessada por parte dos adultos que estão empenhados em ter permanentemente mão-de-obra e outras inteligências que colaborem com eles. O facto de percorrer os sítios e lugares onde tudo acontece é já parte do processo. Para levar as crianças a outras atividades, é preciso contrariar as primeiras tentativas de imitar os adultos com mais importância. E é isto o que se faz nos processos de iniciação, quer entre os povos primitivos quer nos rituais dos povos denominados civilizados. Em ambos os sistemas existem, ou estão organizados, grupos de especialistas que empurram o seu candidato para este desencadear do processo mais primário de querer aprender. Saber é fazer parte dos que têm o conhecimento. Saber o quê é ser parte útil à função social da continuidade histórica. O problema de querer saber apresenta-se quando no grupo aparecem formas diferenciadas de técnicas para ensinar, e a arte de contrariar não fica nas mãos do grupo, mas nas mãos do poder que destina a sua atividade a só preparar essa política de contrariar.
8. Poder saber
Significa ser capaz de entender a contradição da sociedade em que vive, apresentada à infância como seu destino. Se me permitem ainda os leitores outra passagem pelos grupos primitivos, gostava de lembrar o caso da chefia Maori da Nova Zelândia (Firth, 1929). O chefe domina o conhecimento da natureza, das hierarquias, da distribuição do território, da origem, da guerra e da reprodução. Normalmente, ele é o filho mais velho do chefe anterior e é treinado para estes conhecimentos, mas se não consegue afastar-se das suas habilidades prediletas para entender aquela universalidade é logo destituído e substituído pelo irmão mais velho do chefe anterior. Quer dizer, tem que mostrar as capacidades que o povo espera de um condutor de povos para assegurar a sua estabilidade no cargo: a lei Maori não prevê um prazo para o seu governo. Prevê, antes, uma capacidade. Mas prevê também um treino para chefia e uma companhia e ajuda de especialistas para desempenhar o trabalho. Na vida primitiva, como na vida rural europeia, o conhecimento, embora especializado, emerge do conjunto de experiências que as tribos ou aldeias têm, e é do mesmo tipo de lógica para o conjunto: analógico, religioso e metafórico. Na sociedade ocidental, a referida contradição às aptidões pessoais, especialmente no que diz respeito às formas industrializadas de vida, provêm de ideias diferentes acerca do destino social. A divisão final do trabalho não é feita por aptidões para qual a infância é longamente preparada: a divisão é feita para as necessidades de distribuição de pessoal pelas atividades que a produção industrial precisa. Não existe uma sequência entre as bases cognitivas das crianças e o saber que é incutido para o funcionamento social. A diferença está em que um povo, como o Maori, é um conjunto de pessoas distribuídas em tribos que exercem funções miticamente atribuídas pelos diversos domínios da natureza; enquanto a sociedade industrial é uma heterogeneidade de funções díspares que requer habilidades que a própria indústria decide – seja na produção, circulação, distribuição ou consumo dos bens. A sociedade Maori tem hierarquias; o Ocidental industrial tem classes – que vieram intervir na prolongada vida rural. Poder saber, em consequência, passa por uma preparação específica e especial que a sociedade industrial determina de acordo com parâmetros diferentes dos conhecimentos analógicos, religiosos e metafóricos com que também a infância ocidental se defronta nos seus primeiros anos – quer na cidade, quer no campo. Poder saber não é a consequência de processos imitativos de adultos significantes ou de formas previstas hierarquicamente de contrariar as preferências ou aptidões pessoais. É, antes, resultado de uma lógica externa ao grupo de política educativa, que retira o aprendiz do seu meio, dos seus estímulos culturais, para o transferir para uma estrutura onde todo o conhecimento é elaborado na base da experimentação para o desenvolvimento do saber técnico. Como a criança Maori, a criança da sociedade industrial passa pelo ensino mítico, familiar e metafórico. Mas a diferença é logo afastada deste para ficar ligado ao ensino baseado em conceitos que contrariam toda a experiência da primeira infância: de querer saber. O processo educativo desloca o poder do saber, ao colocar as crianças entre o provável ou possível e o provado acerto. Acaba por não se poder saber porque a contradição entre a emoção e a razão é tão forte que limita o entendimento.
9. A emoção
Se o processo educativo começa na vinculação dos seres humanos mais novos aos que os antecedem, é um processo que fica dependente da afetividade entre as crianças e os adultos que tomam conta delas. Nas sociedades primitivas, cultiva-se a afetividade entre progenitores e filhos, e entre iniciador e iniciados. O conteúdo é a explicação dos laços sociais que unem as pessoas entre si, a devoção a quem explica, o respeito ao totem e à divisão taxonómica e hierárquica entre pessoas, envolvendo direitos e obrigações mútuas. Uma grande maioria de povos africanos explica o EL-AL Corão, que define principalmente onde deve estar colocado o coração de uma pessoa. Nos povos ocidentais, também desde há centenas de anos, como acontece no caso muçulmano, o código em que a infância é treinada é o do amar, respeitar, entender-se a si próprio. É deste ensino que os grupos domésticos retiram as suas maneiras de se relacionar; e ainda que entre eles existam rixas e agressividades, a relação afetiva acaba por ser a mais importante, a procura de harmonia e comunicação o alvo principal do que diz se faz. Isto não porque a lei mosaica, ou Kiriwina ou Tallensi, o mandem, mas porque entre estes povos, como entre judeus, ciganos, muçulmanos, cristãos e católicos, todos eles, seres humanos enfim, a capacidade de amar existe como a pedra mármore que o pensamento e a experiência histórica vêm talhando, esculpindo, dando forma e direção, hierarquia e orientação. À criança que aprende e desenvolve a capacidade humana de construir amor e entendimento, falta-lhe experiência de deslealdade e traição; ignora o valor de transação como moeda de troca: confiando em quem toma conta dela, deixando correr o fluxo da confiança e prevendo um mundo de festa. É-lhe ainda entregue ritualmente, quando está na idade estimulada de entendimento, o conhecimento, palavra a palavra, das formas de amor e estima que os seres humanos podem praticar entre si. Finalmente, a emoção é coroada pela prática específica de produzir a vida por meio do trabalho organizado na base do respeito e obediência a quem detém a autoridade: o trabalho rural, nativo, e de outras minorias mesmo ocidentais, como pescadores, operariado industrial, e a colaboração doméstica que existe em todos os grupos e classes, caracteriza-se para as crianças pela adesão. Há grupos onde parece reinar a raiva e a disputa perpétua, mas, como tenho observado, os filhos ficam mais coesos entre eles; os pais têm que ser vencidos permanentemente, mesmo quando têm que lutar para ganhar pelo grito e pela porrada aquilo que não está garantido por uma outra maneira de afetividade (a meiguice das classes burguesas como estratégia de solução). A idade da pré-iniciação é o período de treino de todas as emoções que mais tarde vão configurar o adulto. Esta etapa do processo educativo desenvolve-se ao longo da vida e repete-se nos próprios filhos que as crianças virão a ter. Exprimem-se de forma diferente nas culturas distantes e nas que estão em contacto umas com as outras.
10. A razão
Não falo da capacidade de raciocinar. Falo da faculdade que foi salientada como a mais importante entre os seres humanos, quando o ocidente generalizou a circulação da moeda de um investimento, a usura e a avareza, a criação de empréstimo, os juros e a banca (Iturra, 1991); isto é, quando o ocidente começou a passar ao cálculo de rendimentos para avaliar atividades e capacidades. Para tanto, foi necessário travar-se a solidariedade estatamental a partir a partir do séc. XVIII na Europa e dinamizar também a igualdade entre as pessoas como equivalentes monetários umas às outras. Esta é a vontade externa que, no processo educativo, vem contrariar os desenvolvimentos emotivos e orientar capacidades para conseguir trabalho. Junto as ideias de amor, desenvolveu-se as de concorrência. O processo educativo institucional orienta o conteúdo do seu ensino para a aprendizagem do trabalho produtivo como bem supremo, e à criação de valor e renda como meios de obter moeda. O moteto ocidental do ensino é de que cada pessoa é um indivíduo responsável, que pode optar entre alternativas que entende e para as quais tem recursos que maximiza (Stuart Mill, 1789). Cada uma destas palavras é um conceito indicativo da atividade dentro da instituição escolar, em clara consonância com a teoria que preside a vida social e com a economia liberal organizada a partir do séc. XVIII (Adam Smith, 1776). É verdade que a tradição greco-judaica, da qual nasce o cristianismo, fala permanentemente de livre arbítrio. No entanto, os conceitos não são equivalentes. O livre arbítrio é o discernimento que define os limites do Eu e o respeito do outro, enquanto o indivíduo define a capacidade de um membro do grupo social capaz de viver sem precisar de mais ninguém, e até em concorrência com os outros (Freud, 1989; Jung, 1954). A responsabilidade de que se fala é soma das tarefas que uma pessoa aceita nas suas mãos, mesmo à revelia dos outros e em contradição com eles. Optar define a capacidade de entender todos os processos sociais, mesmo o da criação da riqueza, e, mesmo, de criá-la. A alternativa é a capacidade de agir em várias direções diferentes, mudando o rumo quando a riqueza, isto é, a felicidade, não é encontrada. Recursos são os bens que se têm de guardar para investir e maximizar-se, são os rendimentos acrescidos através de só uma ação. Todas estas ideias têm como fundo que cada um sabe dos preços de toda atividade e que pode pagá-los. Um modelo feito a imagem e semelhança do proprietário dos bens, que precisa de pessoal preparado e formado no cálculo abstrato para que lhe emite a vida e crie assim um valor (Marx, 1863; David Ricardo, 1873). Este é o modelo que se explica no processo educativo institucional. Finalmente cheguei ao que está a ser ensinado na instituição escolar e praticado na vida social. É evidente que a instituição não pode deixar de ensinar o que se espera que a sociedade seja. O que é duvidoso é que a sociedade ocidental esteja constituída por esse tipo de seres sem identidades nem lealdades, bem como é duvidoso de que um modelo assim pensado tenha sucesso. Porque será que no final da glorificação do individualismo as antigas Nações-Estado passem as ser outra vez regiões federadas? Seria esta glorificação do individualismo a forma de se defender de um processo educativo unificante de concorrência que existe mesmo entre seres da mesma genealogia?
11. A erudição
É isto que se pensa que seja o processo educativo: a quantidade de informação universal que uma pessoa tem. A erudição atual é uma consequência do Enciclopedismo dos sécs. XVII e XVIII, dessa rebeldia de intelectuais contra o dogma: não contra o conteúdo do dogma, mas contra o saber porque uma autoridade diz que é assim e não admite contra-argumento. A erudição é a cultura dividida em modelos e parcelas que sistematizam um domínio da interpretação e transformação dos factos sociais e que é logo entregue, com a sua prova, a outros; a transferência é feita a, pelo menos, dois tipos de pessoas: os que vão continuar a investigar esse campo e os que vão reproduzir o conteúdo aos neófitos. A cultura erudita é resultado da experimentação e, por meio dos textos em que se guarda o saber, é entregue às gerações de crianças e jovens como uma verdade, contra a sua argumentação. A função da escola para a infância e juventude, desde o começo até ao fim, é entregar as descobertas dos outros como a interpretação fiel e verdadeira do real; raramente os professores ousam investigar com os seus alunos, como deveria ser. A questão aqui não é criticar este tipo de formação; a questão é debater a estrutura, dentro da qual é formada o saber e no qual a mente é estruturada, entre a escola e lar. Normalmente o conhecimento é lecionado aos estudantes para ser decorado, e a quantidade aprendida é avaliada como positiva ou não: ai, a cultura erudita, que foi essencialmente dialética e antidogmática, passa a ser verdade que substitui as outras. Como consequência, a mente esta preparada para aceitar a verdade que uma autoridade diz, por parecer ser quem sabe, uma mente que na formação emotiva não só aderiu a princípios, bem como estruturou o pensamento para lhe aderir. Aliás, quem estuda está a preparar-se para viver numa sociedade concorrencial; a maior quantidade de saber e a maior adesão ajudam o reproduzir a receita do sucesso preconizado por quem se tem à frente. A vida para o estudante passa a ser um conjunto de textos contraditórios da experiência de definem como a sociedade há-de ser e que mostra o que foi, que entrega uma ideia definitiva do corpo, da hierarquia da sociedade, da ordem e outras ideias. Retira-se do campo de aprendizagem a fluidez do erudito, a fluidez da descoberta, a reprodução da fórmula para que quem é ensinado procure por si. A fraqueza do ensino não está no conteúdo, mas na forma como se ensina e no uso dos textos. Seria talvez necessário introduzir uma distinção na pedagogia: dar informação e logo fornecer metodologia para comparar e descobrir. O que consegue a erudição dos reputados formalmente sábios é uma universalidade de conceitos espalhados de forma igual pelas mentes desiguais dos estudantes. Isto é, uma tentativa de impor um tipo igual de conhecimentos entre todos, que sirva de base à construção de um convívio social uniformizado mais fácil de governar. No entanto, se o processo educativo tem emoção e há empatias dentro da sua parte institucional, a aprendizagem só será possível se, quem explica conseguir reconstituir na mente do estudante os sentimentos com que, quem ensina, aprendeu outras formas de convívio, antes de passar à abstração racional letrada e teórica do dito processo. Os conteúdos transformarão, ou não, a ligação emotiva e racional a que se consiga chegar entre professor e estudante. Este não é o aspeto que mais interessa de todo o processo educativo. Se a emoção e a razão estão juntas, esta última deve incluir a capacidade da instituição de entregar os elementos para a concorrência. Se muitos ficam pelo caminho é devido a que o apetite individual não se consegue impor à coesão social como identidade para cada estudante.
12. Os universais e a multicultura
Emoção, razão e erudição acontecem, ou são percebidos, de forma diferente dentro de uma mesma turma devido as origens heterogéneas dos alunos, como grupo interativo social. Entre os primitivos contemporâneos que os antropólogos estudaram, quer as escolas autóctones quer as iniciações rituais são diferenciadas dos conteúdos do ensino oficial, conforme a hierarquia que, genealogicamente, virá ocupar a criança. Entre os ocidentais (Stoer e Araújo, 1993), a grande massa da população está subdividida em meninos e meninas com experiência diversificada de classe social e de pertença a etnias. Os países da Europa têm recebido dentro de si um conjunto de imigrantes vindos das ex-colónias, ou têm aparecido nas aulas grupos sociais que, até a pouco, em consequência da sua origem, não assistiam à escola ou eram em tão pequeno número que não se dava por isso. Se a formação é, como já referi antes, de uma intensidade marcante, as formas explicativas do real simplesmente não deixam marca se a cultura de origem não é trazida também à aula. A questão é que uma turma heterogénea tem um conjunto de estereótipos à volta. O primeiro, o que cada membro pensa de si como eu, conforme a sua aprendizagem infantil. O segundo, é o que o mesmo sujeito pensa sobre os outros e se os aceita ou não. O terceiro, é o que os outros pensam do Eu. E, finalmente, o que professor pensa de tudo isto. A verdade unificadora não é facilmente conseguida, não passa a existir nas mentes, porque há outras mais forte que a impedem. Quem aparece na escola autóctone primitiva, ou na oficial ocidental, não é o pequeno futuro indivíduo, é a sua genealogia. E não só quem vai à escola: é também a autoridade de quem aí o enviou, que não é a da lei, mas a concorrência social. Quem está na escola é a expectativa do que cada um virá a ser conforme o seu contexto etno-sócio-cultural. Mesmo que no fim venham todos tapar buracos nas ruas, não só os Cabo-Verdianos bem como o resto da respeitável turma branca portuguesa, francesa, ou britânica natural das ilhas, uma hierarquia esperada que esta sempre presente. Quando se inicia a procura da integração na vida ativa, o etnocentrismo mantém a divisão por grupos conforme a experiência cultural e não a solidariedade institucional escolar. O processo educativo ensina de forma clara a universalidade da cultura erudita é possível porque nasceu dentro de um mesmo sistema de comunicação, o cristianismo, e dentro de um mesmo pensamento reprodutivo, o liberalismo monetarista. Os não eruditos têm uma cultura, já que os universais se encontram dentro do seu próprio grupo de classe e de etnia. A questão é pô-los a falar juntos, o que só me parece possível se o ensino académico começar por ter como disciplina obrigatória o Processo Educativo em todas as Universidades; e se, muito cedo, existir a cadeira obrigatória de Culturas Comparadas. Conhecendo, no entanto, a força do etnocentrismo e a fraqueza do esquecido relativismo, confesso que não me parece possível a compreensão mútua entre eruditos e aprendizes. A cultura dominante é da classe burguesa que, para se reproduzir, precisa também destes meandros. Tudo o que disse não foi no sentido de aumentar o pessimismo que muitos sentimos perante as Políticas Educativas, mais sim para ensaiar ideias acerca do processo educativo.
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