DN de 10-08-2011
Não sei se Nuno Crato conseguirá pôr em prática os princípios que veio defendendo ao longo dos anos. Espero francamente que o consiga e não se fique pelas boas intenções, muito em especial no tocante ao ensino do português e da matemática, tanto no básico como no secundário.
O desastre da língua portuguesa tornou-se uma rotina trágica e pode ser visto a partir de vários ângulos que acabam por combinar- -se do modo mais negativo.
Há quem entenda ser mais importante a mera eficácia comunicacional do que todos os aspectos ligados aos níveis qualitativos, mesmo elementares, de utilização da língua, enquanto elemento essencial de uma determinada identidade social e política e veículo de transmissão, de geração em geração, de testemunhos históricos, sociais e culturais imprescindíveis e irrenunciáveis. Há quem reconheça a importância da existência de uma norma-padrão, mas acrescente não ser viável defini-la de modo a distinguir o que é "correcto" do que é "incorrecto", o que vem a redundar num álibi para o vale tudo.
Por isso, aqui há uns anos eu também perguntava neste jornal se se poderia fazer tábua rasa da língua, entendida como modo de conhecimento e apreensão do mundo, depósito de um saber sedimentado pela memória e pela história, instrumento de criação cultural nas mais variadas modalidades do pensamento e da expressão, tão idóneo para a formulação intelectual rigorosa como para a produção de efeitos estéticos irisada pelas emoções e por uma multiplicidade de valores afectivos, representando assim um potencial de riqueza inesgotável na comunicação humana.
Mas há mais problemas: nas últimas décadas, o léxico da nossa língua "encolheu" consideravelmente, o que significa uma perda incalculável. É uma evidência que hoje a generalidade das pessoas, sobretudo as mais jovens e mesmo que tenham tido uma escolaridade supostamente normal, tem mais dificuldade em ler os chamados grandes autores. Não me refiro a casos especiais, como o de Aquilino Ribeiro. Nem a textos mais distantes de nós no tempo, como Fernão Lopes, Gil Vicente, Camões ou Vieira. Mas basta pegar em Garrett, Herculano, Camilo, Cesário, Eça, António Nobre ou Fialho: um grande número de significados e de formulações, de maneiras de dizer e de escrever o mundo e a condição humana, escapa aos leitores, o que acarreta o desinteresse crescente e o abandono dessas leituras, com a consequência do esquecimento trágico daquilo que tais autores e obras representam.
Nota-se também uma crescente dificuldade no tocante à gramática, às regras de concordância, à conjugação verbal, à sintaxe... É raro encontrar-se uma construção em que se combinem correctamente orações coordenadas e subordinadas (esta terminologia não pretende, como é evidente, dever nada à TLEBS).
Nota-se também uma crescente dificuldade no tocante à gramática, às regras de concordância, à conjugação verbal, à sintaxe... É raro encontrar-se uma construção em que se combinem correctamente orações coordenadas e subordinadas (esta terminologia não pretende, como é evidente, dever nada à TLEBS).
Se formos à maneira de falar, o abastardamento da pronúncia da nossa língua ultrapassa as raias do concebível. E sendo este um aspecto em que a escrita condicionará inevitavelmente a oralidade, o chamado Acordo Ortográfico, para além de outras enormidades, constitui um crime por que terão de ser acusados Presidentes da República, Parlamentos, Governos, ministros e universidades, estas, quase sempre e salvo honrosíssimas excepções, por uma demissão e um silêncio institucionais e vergonhosos numa matéria em que tinham necessariamente uma palavra decisiva a dizer.
Os programas oficiais, por razões de inovação pedagógica insensata, ou de ideologia, ou outras, deram cabo do ensino do português e demitiram-se do grau de exigência imprescindível. É claro que há outros responsáveis, para além dos pretensamente científicos: os políticos, as famílias, os pais e encarregados de educação, os professores... Há alguns anos, também escrevi neste lugar que estamos perante um círculo vicioso: não se aprendeu a ensinar bem porque não se aprendeu bem e não se aprende bem porque não se é bem ensinado.
Oxalá Nuno Crato consiga cortar este nó górdio: corrigir os programas e pôr os docentes à altura das suas responsabilidades, criando condições para que as novas gerações aprendam, falem e escrevam um português decente. Se ganhar esta batalha no plano da docência, não deixará de a ganhar também no plano da decência.
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