Sebastião Bugalho
Marcelo Rebelo de Sousa, que não é um político apreciador de riscos, caminhava em gelo fino desde que ameaçara dissolver a Assembleia da República caso a esquerda chumbasse o Orçamento do Estado de António Costa.
Quando o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista fizeram justamente isso, logo na generalidade, Marcelo não pôde pressionar o PS a apresentar uma segunda versão do documento nem tão-pouco o PSD a negociar com quem prometera cair se dele dependesse.
O Presidente estava preso ao que dissera.
E ficámos assim: num impasse, no derrube, numa execução pública da ‘geringonça’ perpetuada pela própria, numa crise política em plena crise sanitária.
Caso ficasse tudo na mesma ‒ com o PS obrigado a devolver-se aos braços da esquerda ‒ o Presidente da República seria responsabilizado.
Teria trocado um PS com uma maioria de esquerda disfuncional por um PS com um parlamento pulverizado. O fantasma da ingovernabilidade, dos Blocos Centrais, das iniciativas presidenciais, dos “acordos de cavalheiros”, dos “ciclos de dois anos” e da instabilidade ‒ sendo Marcelo o Presidente da estabilidade ‒ surgiu, assombrando Belém mais do que os demais.
Na primeira semana de campanha, com as sondagens em empate técnico e o PSD pela primeira vez acima dos 30%, Marcelo teria antes detonado a bomba atómica, não em vão, mas em nome da alternância. E, nesse cenário, teria escapado impune à dissolução porque os portugueses teriam escolhido um novo primeiro-ministro.
Mas também não foi isso que sucedeu.
Foi uma avassaladora vitória do Partido Socialista, a sua segunda maioria absoluta em 48 anos de democracia e o castigo ‒ igualmente abismal ‒ dos seus ex-parceiros de ‘geringonça’.
Ao fim de seis anos de proximidade ao poder, dois sinais de alarme nas presidenciais e nas autárquicas, a esquerda foi reduzida a migalhas. Além do arrastão de voto útil do PS, a juventude da IL penetrou no eleitorado do Bloco e o Chega poderá ter assumido o papel de protesto do PCP.
O que sai disto tudo?
De certo modo, o que Marcelo sempre pediu aos partidos e defendeu para o sistema político: um poder forte com um contrapeso forte, um grande governo e uma grande oposição.
De um lado, o PS, sem desculpas para não reformar. Do outro, as direitas, sem razões para não escrutinar.
Não é um pântano, nem uma planície. É um oceano de PS patrulhado por uma oposição pronta a fazer ondas.
O maior receio do Presidente da República, que a sua década na chefia de Estado terminasse em incerteza, morreu ontem. E o perigo da dissolução sair pela culatra também.
Resta saber se Marcelo, depois de sobreviver a provocar as eleições, sobrevive na maioria absoluta que elas trouxeram.