terça-feira, 7 de novembro de 2017

Entrevista a António Damásio

Cada vez mais biólogo e menos neurocientista, António Damásio insiste nas humanidades para formar homens e cientistas. No seu mais recente livro dá primazia aos sentimentos como formadores de consciência e motor da ciência, e refere a necessidade de um pacto global sobre educação.


O que leva um estudante a levantar a mão quando o professor lhe fala de um tema que o intimida? Como reagirão as gerações que cresceram com as redes sociais, quando precisarem de tempo, mais tempo, do que o imediato? Estamos a viver uma crise na actual condição humana diz António Damásio no seu mais recente livro, A Estranha Ordem das Coisas, que dá prioridade aos sentimentos. Na vida, na ciência, na cultura. Horas depois de aterrar em Lisboa não esconde a emoção perante a edição portuguesa da Temas e Debates. Sorri. Pega no livro de quase 400 páginas, olha a contracapa e retrai a vontade imediata de ver tudo ali. Mais tarde confessará que é um chato com o português. Escreve em inglês, pensa em inglês, mas o português é a sua língua. Quando, ao longo da conversa, na oralidade, lhe sai um vocábulo em inglês trata de arranjar a tradução certa, sobretudo se for para descrever um sentimento. É que são os sentimentos o que está antes de tudo no livro que dedica à sua mulher, Hanna Damásio, e na conversa onde haverá de dizer, já desligado o gravador, que também fala alemão e namora em italiano. "É a língua do amor", refere. Como aprendeu? "A ouvir as óperas de Verdi."

Começa este livro, que vem na continuidade dos anteriores, por esclarecer o que chama de uma “ideia simples”, “como usamos os sentimentos para construir a nossa personalidade”. Peço-lhe que descreva, brevemente, o protagonista deste A Estranha Ordem das Coisas, os sentimentos?


Há a realidade científica daquilo que penso que são os sentimentos, mas há também uma mais alargada ligada a um tema que estamos [com a mulher, Hanna Damásio] a tratar por estes dias para uma conferência sobre ética. Parte dos sentimentos que temos como experiência têm a ver com as coisas mais valiosas da nossa vida; com todas as coisas sobre as quais podemos ter uma valência, as que verdadeiramente contam: vida, doença, dor, sofrimento, morte, desejo, amor, cuidado com o outros [to care]. E, ao mesmo tempo, crimes, medos, raivas, ódios, que têm a ver com o contrário das boas coisas da vida e que podem levar à perda [da vida], e, se não à perda da vida, ao sofrimento. Praticamente todas as coisas que governam ou desgovernam a nossa vida são normalmente transmitidas por uma valência de bom ou mau; de agradável ou desagradável, de recompensa ou punição. São essas que constituem o grande personagem dos sentimentos. Os sentimentos são representações do estado da nossa vida, mas representações qualificadas. Um dos problemas que mais me inquietam é essa impossibilidade que as pessoas têm tido de perceber que a inteligência – ou a nossa mente – vai só até um certo ponto e a partir daí tem de ter uma qualificação. Essa qualificação aparece em termos de agradável ou desagradável, de bom ou de mau, e é isso que faz a grande distinção entre a inteligência humana no sentido mais completo e a mente humana. À inteligência artificial, por exemplo, falta isso. Infelizmente as pessoas não se têm dado conta. Sou um adepto de inteligência artificial e tudo o que esse campo de tecnologia e de ciência nos tem trazido, mas é pena que poucas pessoas dentro desse mundo tenham compreendido que a inteligência artificial tal como é compreendida é uma pálida ideia daquilo que é a inteligência humana no seu real.

Ou seja, o humano, muito por via dos sentimentos, não pode ser replicado artificialmente.

De certeza que não pode ser nem simulado! Há uma grande diferença entre simulação e duplicação. O que a inteligência artificial faz, e muito bem, é uma simulação, e com capacidades extraordinárias, muito superiores àquelas que temos. A capacidade de inteligência no sentido mais directo e algorítmico que temos hoje em dia em matéria de memória, de estratégias de raciocínio é extraordinária. Faltam é essas outras qualidades que temos na nossa inteligência e que são absolutamente necessárias e extremamente realistas, porque têm a ver com aquilo que a vida é. Enquanto a vida concebida no sentido da inteligência artificial não tem nada a ver com aquilo que a vida é. A vida é outra coisa.

E o que é a vida?

É uma coisa venerável, confusa, efusiva. A grande arte dá-nos isso e a grande literatura dá isso extraordinariamente. Quando não se inclui essa componente de confusão, efusividade, aquilo que pode ser qualificável de bom ou de mau, perde-se uma grande parte do que é a vida. Por isso, e para acrescentar uma nota à sua pergunta anterior, os sentimentos como personagem são as representações, aquilo que está na nossa experiência mental quando estamos a viver uma vida real. E ao mesmo tempo uma forma de nos alertarem para aquilo que está a correr bem ou mal no sentido mais amplo do termo: a vida dentro de um organismo. Um organismo vivo, que tem bons momentos e maus momentos, que tem todas as variações e flutuações que vêm do seu metabolismo e que, porque tem mente e tem consciência – que é uma coisa que nós temos e as bactérias não – vai poder ter acesso a esse relato daquilo que está a correr bem ou mal.

No livro, fala da consciência da morte como definidor dessa humanidade, o sentimento de fim, que faz com que o homem encare a dor de outra maneira. A consciência da finitude é, desse modo, formadora não apenas de uma maneira de estar socialmente, como também criadora de uma linguagem. Como é que se transpõe esse saber da morte, muito vezes olhado como transcendência, para a ciência e muito concretamente para a biologia?

Tem sido difícil tratar essa questão. Uma das grandes barreiras é que a ciência, com a sua natural preocupação com a objectividade, teve enorme dificuldade em aceitar coisas que parecem extremamente subjectivas e confusas, com muitas variações, que é difícil de agarrar no sentido mais objectivo do termo. O facto de que os sentimentos são naturalmente subjectivos.

Isso tem sido matéria dos seus livros.

Sim, ando há 20 anos a explicar que sentimentos não são emoções. Mas é extraordinária a resistência. As coisas espantosas que dizem... falam de hearts and minds! Esperem um pouco: hearts and minds? O coração é a emoção, mas querem mesmo dizer coração? E querem mesmo dizer mente sem coração? As confusões são extraordinárias. Mas talvez o ponto mais importante é que as emoções são públicas. Quando está contente e se ri, ou quando está triste, quando está irritada tudo isso aparece na sua máscara. Aparece no rosto e no corpo. Quando se sente irritada ou triste ou alegre isso aparece unicamente em si. Você é a única pessoa que tem acesso a essa informação no sentido real. É uma experiência privada. Você pode simular a representação pública, mas essa distinção explica em grande parte porque é que as pessoas estão muito mais confortáveis quando falam de emoção: porque é público, porque é observável, enquanto os sentimentos têm de ser observáveis por dentro. Mas não estão de forma alguma fora do campo da ciência. É possível a cada um de nós fazer as observações, fazer o resumo dessas observações que é um campo científico e filosófico a que se chama fenomenologia. Portanto, temos a possibilidade de fazer as nossas próprias observações, partilhá-las com os outros, fazer comparações e fazer descrições o mais completas possível. Não há qualquer limitação do ponto de vista científico. Não há limitação da objectividade com que se pode estudar a subjectividade. E é isso que as pessoas não compreendem.

Sintetizando, fala de sentimentos e consciência, de emoções, de sensações.

Três coisas diferentes. Sensação é o que permite detectar a presença de um estímulo – e que as bactérias e as plantas também têm – e que gera uma resposta. Depois há certas respostas mais complexas. Em organismos simples, se tocar na criatura ela retrai-se. É a mesma reacção que terá se alguém a assustar, uma reacção emocional. Há reacções conservadas ao longo de biliões de anos e que são emocionais, reacções de movimento. O centro da palavra emotion é motion. Se alguém lhe perguntar a diferença entre emoção e sentimento agarre-se à palavra motion; o movimento está do lado das emoções e se está do lado das emoções está-se do lado daquilo que é visível para os outros. Sensação, no seu básico, não tem nada a ver com a emoção propriamente dita. A emoção é uma reposta complexa de movimento em relação a um estímulo que foi sentido e depois há o sentimento, que é a experiência mental daquilo que se passou no organismo quando houve sensação e emoção. São três graus. Um é extremamente simples, outro já é mais complexo, em que há uma resposta, e ainda um outro em que há o apreender consciente e mental daquilo que foi a resposta e que se passou no organismo. São mundos diferentes.

Podemos dizer que estamos no campo da subjectividade. É isso que o estimula do ponto de vista científico?

Sim, é extremamente importante. O que eu quero é dar objectividade científica àquilo que é uma coisa subjectiva, que é no fundo a definição da consciência. Grande parte do problema da consciência é o problema da subjectividade. É por isso, aliás, que é tão extraordinariamente difícil de perceber; é por isso que as pessoas têm enormes conflitos e desacordos sobre o que é a consciência. Cada vez mais estou absolutamente convencido que não é possível distinguir tecnicamente sentimento e consciência. O sentimento, muito possivelmente, foi o princípio da consciência do ponto de vista evolutivo. O sentimento com a sua natural subjectividade e tudo isso se estendeu a outras subjectividades: subjectividade do que está no exterior – eu tenho subjectividade em relação a si neste momento, mas também tenho subjectividade em relação ao meu interior. Por exemplo, sei neste momento que estou um bocado cansado, fiz uma viagem de 15 horas e estou fora da hora em que deveria estar. Tenho essa subjectividade. E tenho a subjectividade em relação a si, às paredes desta sala, ao que estou a ouvir atrás de mim. O que temos é uma grande possibilidade, muito rica, de juntar subjectividades dentro da nossa mente. A nossa mente é toda feita de subjectividades.

Esse é também o campo da arte.

Sim. E eu sou um apaixonado da literatura. A literatura é o modo mais rico, de todos os que temos, de entrar dentro da subjectividade de outra pessoa e de nos fazer perceber o que pode ser a outra pessoa, muito mais do que o cinema, do que o teatro, porque a situação em que estamos a ler é... devemos estar sozinhos e com um texto que podemos parar a qualquer altura. Pode ler um parágrafo e parar e pensar e retomar e reler. Não pode fazer isso com um filme a não ser que estrague tudo. Tecnicamente pode, mas ninguém vê um filme dessa maneira. A parte da experiência de ver um filme é vê-lo na continuidade de um determinado período de tempo.

Como cientista, a literatura pode ser-lhe útil – pese a ambiguidade da palavra – neste estudo?

Absolutamente. Tudo é útil, umas coisas mais do que outras, mas a literatura é extraordinariamente útil porque é uma entrada muito rica na mente, uma entrada que utiliza a vida subjectiva, os sentimentos. É muito curioso, quando se olha para as humanidades de uma forma geral, e para as artes vê-se como têm sido laboratórios de estudos. As pessoas não se aperceberam ainda de que uma boa parte do que se passa no mundo da grande arte é uma espécie de prefácio para o estudo científico dos seres humanos. Quando não havia uma estrutura laboratorial científica, as pessoas já estavam a...

Elaborar?

A elaborar. E a literatura tem sido um grande contributo. Quando me perguntam qual é o maior cientista de sempre respondo: na minha área, é Shakespeare.

Está lá tudo?

Praticamente tudo. Pelo menos esboçado. O que se tem é de desenvolver. Quer sejam as peças históricas, as tragédias ou as comédias, a própria poesia. Praticamente tudo aquilo que interessa, todos os grandes temas, estão lá. Entre as milhares de coisas que gostaria de escrever – se calhar não terei tempo –, seria fazer qualquer coisa com a neurociência ou a neurobiologia cognitiva vistas através do Hamlet e do Otelo. O Hamlet é praticamente suficiente. É tão rico e está tão cheio daquilo que conta... E talvez meter o Falstaff pelo meio para ficar mais completo.[risos]

Um dos capítulos do livro é sobre a crise do actual, “a actual condição humana”. Escreve: “Considerar os nossos dias como sendo os melhores de sempre seria preciso que estivéssemos muito distraídos”. Esta “crise” também é causa de uma certa resistência de parte de muitos cientistas em incluir as humanidades nas suas investigações?

A resposta é que há essa resistência, mas não da parte de todos. Há também quem adopte, quem veja o valor, o interesse, muitas vezes talvez porque na sua própria vida pessoal percebem que é importante e acabam por ser seduzidos por essas possibilidades. Se as pessoas trabalham em áreas muito microscópicas daquilo que é a ciência, mesmo que seja ciência humana, é mais difícil fazer a passagem directa. E não é uma coisa que se deva sequer criticar. É perfeitamente compreensível. Mas certas pessoas da minha geração, e até de algumas gerações a seguir, têm um enorme apreço pelas humanidades dentro da ciência. Não se devem fazer generalizações, mas é verdade que tem havido uma certa resistência e também alguma resistência militante. Em certas áreas, quando pessoas das humanidades olham para o contributo da teoria da evolução ou da genética... há tantos erros, tanta complicação, por exemplo a forma como parte desses conhecimentos levou a teorias sobre os seres humanos, da eugenia até aos extremos piores da exploração racista. Claro que há razões para as pessoas terem tido durante algum tempo uma certa rejeição e depois muitas vezes também têm o pavor do reducionismo. É um grande pavor também da parte das humanidades e, portanto, rejeitam que a ciência possa trazer alguma coisa de tão importante como aquilo que as humanidades têm trazido em matéria de compreender o que são os seres humanos.

Neste livro levanta duas ou três vezes esse problema...

Porque eu não tenho qualquer espécie de desejo de reduzir aquilo que são os seres humanos no seu mais sublime à ciência abstracta. Pelo contrário. Aquilo que acho, e cada vez acho mais e neste livro é a primeira vez que me apercebo, é isto: quando se ligam sentimentos à cultura, por um lado, e sentimentos à homeostasia e aos princípios da vida, o que estamos a fazer é a enriquecer a ligação entre a cultura e a vida. Ao contrário de reduzir, estamos a aumentar, a fazer com que esse fio seja mais visível.

A palavra homeostasia cruza todo o livro. Ela é completamente definidora do que é o humano?

É completamente definidora do que é um ser vivo.O ser humano precisa de ter não só os imperativos da homeostasia nos seus aspectos mais complexos, mas também desenvolvimentos que vêm com a multicelularidade, o aparecimento dos sistemas nervosos e depois o extraordinário desenvolvimento da capacidade dos sentimentos, consciência de mente com imagens...

Sobre a capacidade de criar imagens, escreve que “todas as imagens do mundo exterior são processadas de forma paralela às reações afectivas... ", e depois apela a um exercício: “pensemos na maravilha alcançada pelo nosso cérebro ao lidar com imagens de tantas variedades sensoriais, de origem externa e interna, ao ser capaz de as transformar nos filmes da nossa mente. Em comparação, a montagem de um filme é uma simples brincadeira.”

Exacto. Mas faço essencialmente uma abordagem crítica. Quando no início de tudo me falou da genealogia deste livro, há vários temas que venho a tratar há muitos anos, mas que agora me parecem, alguns, perfeitamente claros, e em que também tenho a coragem de dizer exactamente aquilo que penso sem estar com rodeios por poder ofender alguém que achasse que era pateta e novo de mais para estar a dizer coisas. Agora já posso dizer tudo o que me apetece.

Pode-se dizer que os sentimentos são fundadores da ciência?

Possivelmente são. São pelo menos motivadores. Neste livro há três papéis que dou aos sentimentos, ou ao afecto em geral. Primeiro, motivadores, depois monitores e depois negociadores. Os sentimentos intervêm nesses três pontos. São coisas diferentes. Uma é motivar, outra é a monitorização e a outra é a negociação de quando as coisas correm mal ou bem de mais. Há constantemente ajustes. Há pessoas que perante dois advogados a discutirem um contrato ou dois políticos a discutirem um tratado são capazes de pensar que isso está a acontecer num plano puramente intelectual; não está. Acontece num plano intelectual e acontece com toda a miríade de alterações que têm a ver com a forma como uma das pessoas apresenta o argumento e como a outra o recebe. Tudo isso é uma negociação que está a ser feita não só num plano de conhecimento e razão, coisas que se podem dizer objectivas e frias, mas também nesse outro plano que tem a ver com a forma como a negociação está a correr do ponto de vista afectivo. Essa é a realidade. Tem o exemplo espectacular do que se tem estado a passar nestes últimos dois anos com movimentos de populismo, de racismo em toda a parte. Muitas vezes, a forma como esses problemas são apresentados gera reacções de zanga e protesto puramente emocionais. Uma das coisas extraordinariamente curiosas é que quando as pessoas falam de emoções falam quase sempre do ponto de vista negativo das emoções. Muitas vezes acham que há o lado objectivo, o do bom raciocínio, e depois as emoções, más, que tornam as coisas irracionais. É um disparate completo, porque é limitar o âmbito das emoções ao negativo. Há emoções muito positivas; ter compaixão, gratidão, desejo de ajudar, cooperar. O amor! o desejo pelo amante, o amor pela criança que se está a criar.

É desse preconceito que vem a distinção entre inteligência e inteligência emocional?

Sim. As emoções muitas vezes ajudam a tomar a decisão e muitas vezes trazem o conhecimento, o discernimento, o destilar de uma série de conhecimentos que temos, uma vez que foram aplicados e qualificados. A intuição é uma maneira de fazer linha recta para a solução do problema sem andar por todas as fases intermédias. Essa intuição vem de uma forma emocional. Tudo isto tem imensa graça. As pessoas que descobriram o big data falam de como um grupo de computadores pode ler uma enorme quantidade de dados e tirar uma conclusão extremamente nova, verificando que aquilo é o que se deve fazer. Mas isso que o computador está a fazer é aquilo que a intuição humana faz há milhões de anos. O nosso cérebro é um big data system que tem imenso conhecimento do que é a nossa vida interior fisiológica e sobre o que é, e tem sido, a nossa vida em geral. E esse big data system está constantemente a dar-nos um dado institucional que é extremamente importante para a nossa vida. Tudo isso vem do lado das emoções e faz parte do que se poderia chamar inteligência emocional. Não uso o nome porque não acho que haja uma inteligência emocional e uma não emocional. Há inteligência.

Começa o capítulo dedicado à crise actual dizendo que nunca tivemos tanta informação nem tanta possibilidade de sermos felizes, mas... E critica os media públicos e o seu modelo lucrativo de negócio, reduzindo a qualidade de informação; questiona o valor de entretenimento aplicado à história jornalística e afirma: "Embora a literacia científica e técnica nunca tenha estado tão desenvolvida, o público dedica muito pouco tempo à leitura de romances ou de poesia, que continuam a ser a forma mais garantida e recompensadora de penetrar na comédia e no drama da existência, e de ter oportunidade de reflectir sobre aquilo que somos ou podemos vir a ser. Ao que parece não há tempo a perder com a questão pouco lucrativa de, pura e simplesmente, ser.” Que cultura é esta que parece rejeitar a criação de pensamento e se fica pela emoção?

Historicamente, quando se vê o que tem sido a marcha dos seres vivos, há coisas que são previsíveis e outras que não são. E depois há certas coisas que acontecem, em que as pessoas não apreendem nem prevêem as consequências. O que se está a passar, por exemplo com a Internet e as redes sociais, é uma entrada extremamente larga dentro das mentes. É uma coisa que entra dentro de nós e que tem o poder de modificar a forma como pensamos e nos comportamos.

A sociabilização.

Exacto. Há uma entrada dentro do que somos do ponto de vista mental a um nível completamente diferente de outras tecnologias. Não é tão somente um telefone. É o telefone e a possibilidade de entrar num mundo de conhecimento de forma imediata. Ter essa informação toda é extraordinário mas o que temos de pensar é o que acontece com as pessoas que só têm vivido com isso e não tiveram a possibilidade de se desenvolver com mais distância em relação ao que se está a passar nessa rapidez de tecnologia. Há também o problema do que vai acontecer quando as pessoas ficarem sem tempo para reflectir sobre o que estão a viver. Vão ter a possibilidade de ter tudo muito rapidamente, a quantidade de informação é enorme e a maneira de resolver os conflitos tem de ser diferente. E vai ser mais complicada porque não há tempo para o discernimento. É possível fazer o contra-argumento: é o problema que temos por sermos de uma geração anterior e não termos crescido com isso, e os cérebros das pessoas que já cresceram com isso estão adaptados. Isso é verdade em parte, mas não quer dizer que essas novas pessoas que cresceram dessa maneira não tenham ao mesmo tempo reduzido a sua possibilidade de olhar para o mundo de uma forma mais calma e mais completa e reflectida. É um problema em aberto, que tem de ser estudado, e não o tem sido porque tudo está a acontecer agora.

Usa as expressões “bancarrota espiritual” e “bancarrota moral” para classificar o que está a acontecer. 

E poderia juntar aqui a trigger warning, que está ligada a tudo isso. Por exemplo, numa aula pode haver uma discussão sobre violência ou sobre sexo e um aluno levanta a mão a dizer trigger warning, i dont feel safe anymore. É uma concepção da vida como se a pessoa pudesse viver protegida de tudo o que não é conveniente e, ao mesmo tempo, ficar sem a possibilidade de perceber o que se está a passar e de se defender inteligentemente. O presidente actual da Universidade de Chicago tem escrito sobre isso e diz que eles rejeitam isso ao abrigo do trigger warning e isso é uma remoção da educação e nós, como universidade, não vamos deixar que os nossos estudantes sejam amputados e fiquem sem a possibilidade de responder inteligentemente às ameaças. Tudo isto são problemas para serem estudados. É relativamente fácil olhar para a situação e reconhecer que o progresso é extraordinário, as possibilidades são magníficas e ao mesmo tempo também temos de reconhecer que precisam de ser estudadas para ver se podem correr melhor. As razões pelas quais as coisas não correm bem serão imensas mas há possibilidades. A questão que referia há pouco, do ser, é tão importante e parte do pressuposto de se conseguir estar consigo próprio e observar a maravilha da existência sem preocupações com aquilo que vem antes ou depois. É uma capacidade unicamente humana.

Estamos há muito tempo a conversar e pergunto-lhe o que é que isto tudo tem a ver com biologia?

Há biologia em variadíssimas áreas. A biologia no que diz respeito à nossa violência ancestral. Somos primatas, a nossa herança é a de animais... e trazemos a autodestruição connosco. Falo de Freud e da ideia de auto-destruição. Ele chama a atenção para uma coisa que é muito real e que as pessoas muitas vezes querem esquecer: a ideia de que somos capazes de violência. E há uma ideia que é consequente a essa e tem a ver com a educação, com o facto de que a única maneira de resolver o problema da nossa violência natural e de como naturalmente as pessoas querem estar com aqueles que são parecidos e não com os diferentes. Tem de haver um plano de educação extraordinário, uma espécie de super-plano de investimento global que não tem sido feito por razões que são também históricas e sociopolíticas.
O mundo é dividido, depois há uma crise económica, uma crise política que leva a migrações, essas migrações trazem dificuldades e há reacções contra e não há possibilidade de coordenar globalmente um plano educacional. Para mim não é uma ideia mítica, acho possível. Não é possível só com as Nações Unidas. Tem sido possível em certos períodos. Os Estados Unidos, com todos os seus problemas, tiveram uma acção extraordinária no pós-guerra. Há um período que não é de paz completa, em que houve um investimento em reconstruir países e permitir que houvesse um alargamento da educação e da maneira de compreender outros que são diferentes. É uma grande projecto que, em parte, funcionou, tem funcionado, mas que neste momento está a ser ameaçado.

Já viveu no Iowa, em Chicago, agora vive em Los Angeles. Da sua experiência pessoal, as diferenças acentuaram-se entre esses três mundos geográficos. Há um país muito dividido. Um centro que se sente esquecido e as margens liberais.

Há muitas semelhanças com as experiências europeias. Nos EUA é uma coisa mais orgânica. Sempre tiveram enormes divisões geográficas. Há uma narrativa histórica que conseguiu compensar e impor um bom funcionamento em conjunto à volta de certos mitos e neste momento há uma fragilidade das relações, há fenómenos económicos extraordinariamente importantes e há uma evolução de tempos diferentes em diversas comunidades. Mas veja a Europa, encontra exactamente os mesmos problemas – que na Europa são muito velhos e um pouco esquecidos. Isso está dentro do que são os seres humanos; os seres humanos a criarem um grupo, uma história com determinados hábitos, determinadas preferências e a forma como aceitam, ou não, que isso possa ser suplantando.

Isabel Lucas (Texto) e Rui Gaudêncio (Fotografia) in Público

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