Há cerca de um mês publiquei um artigo aqui no PÚBLICO onde citava António Arnaut a defender que os médicos deveriam ter carreiras profissionais equivalentes às dos magistrados. Ora, se há especificidades no estatuto profissional dos magistrados são a autonomia profissional, a inamovibilidade e o muito razoável estatuto remuneratório. Escrevia eu nesse texto que esse raciocínio se devia aplicar com mais razoabilidade aos professores, já que a escola pública e os professores constituem a mais decisiva das infraestruturas democráticas, mais ainda que os médicos e o SNS. Sem os professores, ou com a sua diminuição, mais cedo ou mais tarde tudo rui. Descontando os júdices e os quintinos, a questão principal do debate sobre o papel dos professores na sociedade portuguesa diz respeito, justamente, à natureza do seu estatuto profissional. Vamos então por aí.
A profissão de professor é essencialmente ética. Diz respeito a fins pessoais e sociais a alcançar, dos alunos, da escola e das várias comunidades a que se encontra conectada. De modo amplo, os fins que se jogam nas suas tarefas profissionais são os que estão estabelecidos na Declaração Universal dos Direitos do Homem, na Constituição da República Portuguesa e na Lei de Bases do Sistema Educativo. Pelo meio, bem entendido, há toda uma diversidade de especificidades e tensões. Desde logo, a principal responsabilidade dos professores é para com os seus alunos concretos, o que só pode ocorrer no contexto e assumindo aquela que é uma das suas principais características profissionais, a autonomia pedagógica e científica, sem as quais não é possível ser professor. Bem entendido, esta autonomia é de natureza tensional. Está em tensão com as comunidades locais, as direções das escolas, as demandas governamentais, os próprios interesses individuais dos alunos. A autonomia profissional é uma pré-condição básica da profissão, sem a qual não é possível responder à virtualmente infinita complexidade e plasticidade das situações pedagógicas concretas, à permanente evanescência relacional, cada dia, em cada sala de aula. A autonomia profissional dos professores nada tem a ver com fixações corporativas mas, pelo contrário, é condição de possibilidade de resposta ética e prática a cada um dos seus alunos. Sem autonomia profissional não há professores, mas simplesmente funcionários, repetidores, como se não houvesse alunos.
A somar a esta complexidade, as tecnologias pedagógicas são constitutivamente instáveis e não recolhem, nem podem recolher, consenso entre os profissionais da educação. Mais uma vez, o que funciona nuns casos pode não funcionar nos outros. As relações causais entre as ações dos professores e a configuração das aprendizagens não são suscetíveis de ser estabelecidas direta e positivamente. O que se ensina hoje, a ação de hoje, muitas vezes só refulge tardiamente e em conexão com eventos e relações que à partida não faziam sentido, mas que, de repente, começam a funcionar! Simplesmente não há como estabelecer tecnologias positivas de ensino-aprendizagem. Os jovens não se deixam padronizar.
Assim sendo, e sem aprofundar o assunto, a autonomia profissional dos professores está em tensão especial com a ideia vulgar de avaliação profissional, vista de um ponto de vista de prestação de contas metricamente definida, como comummente é pensada nas empresas e nas profissões imediatamente instrumentais, e que configuram o senso-comum sobre o assunto. Sendo cada aluno, cada turma, cada escola e cada professor âmbitos específicos de responsabilidades, necessidades e respostas éticas e pedagógicas, não é possível estabelecer referenciais e padrões objetivos do que seja um bom professor, a não ser de modo negativo. É certamente possível definir-se o que é um mau professor, mas é impossível definir o que é um bom professor. Um bom professor num sítio pode ser um mau professor noutro, o que não faz dele integralmente mau ou excelente. A ideia segundo a qual é possível estabelecer um padrão objetivável do que seja um bom professor ou o desvio relativamente a esse padrão conduz, inevitavelmente, à perda da autonomia profissional e à sua calcificação, impedindo-o de responder às necessidades dos seus alunos, substituídas pelas necessidades do sistema de injunções métricas-avaliativas. Porque é que isto é assim? Porque os professores lidam com crianças e jovens, pessoas em estado especialmente plástico do ponto de vista emocional, cognitivo e social; porque lhes compete ensinar criando âmbitos relacionais sumamente complexos; porque os seus saberes, essencialmente práticos, estão em mutação permanente, quer do ponto de vista especificamente científico, quer do ponto de vista metodológico e ético; porque, justamente, o entorno da escola é o mundo todo e a posição do professor enquanto interface entre as crianças e os jovens e o mundo é do tamanho dessa complexidade. Não há, então, nada mais difícil e complexo que ser professor, e tanto mais quanto mais jovem é o seu aluno.
Quer isto dizer que não é possível avaliar os professores? De todo, não. A questão é o que entendemos por avaliação docente. Já vimos que se “avaliação” quer dizer medir a distância de cada prática relativamente a um padrão profissional objetivo e “excelência” (não há palavra mais repugnante, no contexto da profissão de professor), a resposta já foi dada. Não, isso não é possível. Nem desejável. Mais do que isso, a “pulsão avaliativa” e observacional dos políticos é quase sempre mecanismo de legitimação das políticas e não instrumento de melhoria, correspondendo antes à paranoia panótica internalizada na sociedade de transparência e de vigilância integrais em que nos transformamos. Então como avaliar os professores? A coisa é técnica e temo que os poucos leitores que tenham conseguido chegar a este parágrafo não sigam daqui para a frente. É sempre mais fácil ouvir o júdice ou o quintino. Mas a resposta, de muita gente de várias áreas de especialidade, e minha, é que a avaliação dos professores não pode senão consistir num sistema de interpretação e diálogo permanentes entre os professores e as suas práticas. Um sistema de interpretação permanente não liga com a ideia de prestação de contas e medição categorial. Eu sei. E ainda bem. Como se faz isso, então? Instituindo, como está instituído, mecanismos de mediação e debate pedagógico nas escolas e fora delas, a que os professores tenham que recorrer, como recorrem... desde que lhe deem tempo. Sem tempo nada feito. Não há avaliação possível. Nem interpretativa, nem objetiva (que não é avaliação).
E que tem tudo isto a ver com as carreiras? A carreira profissional dos professores não é um sistema de antiguidade. Isto já foi dito mil vezes, mas o seu contrário foi dito um milhão. Mas mais vale dizê-lo, então, mais uma vez. A progressão na carreira dos professores depende de uma acumulação necessária de três fatores: avaliação de desempenho; formação contínua; tempo de serviço. E a progressão ao quinto e sétimos escalões depende de vagas, estabelecendo uma barragem administrativa à progressão. Também não é verdade que todos os professores tenham as mesmas funções. A supervisão pedagógica e a coordenação dos departamentos científicos/pedagógicos são exclusivos dos professores do quarto escalão ou superiores. É certo, e assim é que está bem, que os coordenadores de departamento não são, nas escolas básicas e secundárias, superiores hierárquicos dos outros professores, mas apenas coordenadores das equipas pedagógicas, desde logo porque são eleitos (de entre os professores do quarto escalão ou superiores que sejam detentores de experiência relevante ou formação especializada). Mas sim, é verdade que, em teoria, todos os professores podem chegar ao escalão mais alto da sua profissão, nem que seja nos últimos anos de serviço. E isso tem uma razão básica para ser assim. E a razão é económica e está bem que assim seja.
Como vimos acima, o professor é detentor de competências profissionais especialmente complexas. Para além das competências do seu campo científico (que não para de evoluir e lhe exige uma atualização permanente), são-lhe exigíveis competências culturais e emocionais muito amplas, susceptíveis de lhe permitirem uma compreensão, participação e relação aprofundadas com os seus contextos sociais, culturais e políticos, a começar pelo contexto da sua escola. Sem essas competências amplas o professor transformar-se-ia num mero repetidor, alienando o aluno, treinando-o na obediência e, portanto, deixando de ser um professor. Para que possa cumprir adequadamente estas exigências os professores precisam de tempo. De tempo para si, para o cultivo daquelas competências culturalmente complexas, e de dinheiro. O saber custa dinheiro, como se sabe, e não se pode exigir aos professores que sejam tudo, literalmente tudo (!) e, a seguir, pagar-lhes como operários com funções repetitivas, instrumentais e operacionalmente simples. Os professores têm de ser razoavelmente pagos, para a média do país. Salários que permitam aos professores apenas uma relação mínima com o seu saber e formação é a opção de um saber pobre, mecânico, medíocre e sem futuro. A ignorância e o anquilosamento culturais são mais caros que professores medianamente pagos.
Ora, esta é a grande opção que o Partido Socialista tem que fazer. Ou quer uma escola pública qualificada e democrática, o que implica professores qualificados, autónomos e dotados de saberes complexos, com requisitos salariais razoáveis (tendo em conta a média do país), ou quer uma escola pública autoritária, com professores hierarquizados, vigiados, desprovidos de autonomia profissional, mal pagos, proletarizados e, portanto, tendendo para a mediocridade profissional (como queria Maria de Lurdes Rodrigues). Em suma, ou quer uma escola pública decente ou quer uma escola pública para pobres, que sirva essencialmente a reprodução da desigualdade.
Temos, por último, a magna questão de haver ou não dinheiro para uma escola pública decente. O governo anterior vendeu com sucesso a ideia que não havia alternativa a um país pobre, feito de baixos salários, com funções públicas vegetarianas, quando não completamente destruídas. O argumento é que não havia dinheiro. Muitos portugueses convenceram-se disso. Tantos que a PAF até ganhou as últimas eleições. Mas confirmamos, entretanto, que o governo de Passos e Portas estava enganado. Afinal havia alternativa, ao governo anterior e às suas políticas. Mas, afinal, lá regressou pela janela a mesma conversa de que, afinal, não havia mesmo alternativa, ou, a haver, seria assim uma alternativazinha. O PS e os partidos da esquerda parlamentar têm que se decidir, para que a verdadeira alternativa não seja a implosão do atual sistema partidário, a que Portugal conseguiu escapar pelos pingos da chuva, ao contrário do resto da Europa. Dizem que Costa é um génio da política e Centeno o Mourinho das Finanças. Com a ajuda do BE e do PCP só posso estar convencido que não deixarão de nos surpreender positivamente.
Entretanto, os bullies destes dias não deixarão de ser surpreendidos pela resiliência e saber cívico dos professores portugueses.
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