segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Crónicas (3) - José Manuel Pinto Sousa - Quase


Quase

Perante um obstáculo, uma dificuldade ou um semblante desanimado, triste e quase acabado, a verdade emerge. Ou mulher ou rato. Há que fazer uma escolha.
Se repararam na palavra "quase" escrita no primeiro parágrafo, posso dizer-vos que será fundamental no desenlace da ideia que aqui vos trago.
Mas afinal o que te dói, rapariga? Estás de cara à banda. Será fastio, enfado ou fado que singra? Era magra. Pachorrenta. Nunca ninguém a ouviu cantar. Nem no banho. Mas teimava que tinha uma sina danada, vinda não sabia de onde. Talvez um mau-olhado deitado por aquele animal estuporado com quem viveu mais de meia dezena de anos. Vade retro, seu assassino de almas. Ficava furibunda quando se lembrava dele, o Pinheiro.
Mas ela, a Josefa também tinha pelo na venta. A prima dela afiançava que chegou a meter as mãos nas fuças do Pinheiro. O Manel Barbeiro bem o viu de olho negro. Mais negro que o sorriso que tinha por força da ausência de água misturada com pasta de dentes. Água nunca. Vá lá, só quando o Tinoco a mesclava no tinto para enganar os fregueses. O Pinheiro gostava da pinga. Então e ela, a Josefa? Fica-te por aí um pedaço de tempo que ainda vais ter de bulir. Ó se ia. É que o graveto não é fêmea e é preciso dar ao chinelo todos os dias. Entretanto, o Manso andava perdido. Sim, o Manso é o Pinheiro, já que de bravo nada tinha e a homenzarrada da terra dava e gostava de inventar estes apliques de personalidade.
Quem nunca gostou da brincadeira foi a Josefa. Entende-se. O falatório não abonava em seu favor. Manso deposto, aguardava-se novo rei para ocupar o cadeirão supimpa que a moça tinha adquirido para si e foi usado pelo Pinheiro enquanto lá andou. Rico sofá. Como vos tinha dito, a Josefa quase sucumbia a mais um desgosto amoroso. Quase! Mas lá andava vivinha da Silva, rebolando as curvas e contracurvas de um corpo que ainda fazia gastar meias solas aos que passavam nas ruas por onde andasse. Os mesmos que apareciam com dores no pescoço, torcicolos evidentemente, no consultório do doutor Mirandês e cuja receita era igual para todos. Menos olhadelas por cima do ombro e dedicação às esposas. Para quem era casado, pois os outros só tinham de lhe fazer frente e candidatar-se à cadeira de sonho.
Estava na calha. A rapariga não poderia viver desamparada durante muito tempo. Até acertar. Todos na terra sabiam que o predestinado ainda não tinha chegado. Necessitava de ser possuidor de várias nuances de encantar e encher o olho. Não de pancada, está bom de ver. Essa só serviria para alimentar os cônjuges desalinhados das suas ideias predefinidas, recalcadas, vincadas a ferro de engomar por uma vida de mudanças. Mundos de trapaças e energias transbordantes, em vão. Mas sempre com o mesmo objetivo. O bem-estar terreno enquanto pudesse e tivesse corpinho para alimentar o sonho.
Será que tu não enxergas, mulher? Quando é que essa cabeça descansa? Aproveita a calma da tarde, faz planos para assentar e deixa-te de invenções, dizia-lhe a prima Gertrudes que também era bonita e torneada mas apresentava-se muito mais inteligente do que a modernaça, destrambelhada, filha de seu tio.
De falhanço em falhanço, prenhe de tiros de pólvora seca, continuava a senda. Os pretendentes também não se faziam rogados. Enquanto uns, perfeitamente sabedores das virtudes carnais da cachopa, pretendiam era festa. Havia um ou outro, tímidos o bastante, desconhecedores da vida vivida sacada a ferros, fórceps também, capazes de lhe dar mundos e fundos. Coitados, não eram possuidores de fortuna salvadora da patroa, mulher de grandes apetites doirados, apenas capazes de satisfazer as necessidades do dia-a-dia. Era pouco.
De falhanço em falhanço, as exigências, os obstáculos colocados, a realidades acerca das intransigências à reformulação do ninho foram baixando de cotação. As primeiras aflições e as contas com o centro de saúde estavam em alta. Foi ali. No meio da salvação das maleitas de pequena monta, surgiu-lhe o plano final. A grande machadada. A salvação. Ele, doutor médico, viúvo e conta bancária forrada, embeiçou-se pela paciente. Consulta atrás de consulta, um encontro fortuito, pensava ele, no café da esquina e estava a coisa montada. Estratega de gabarito, o cadeirão estava prestes a ser ocupado. Ou talvez estivesse na altura de se adquirir um novo.
Ali vai ela, a Josefa, no seu novo bólide. Casaco de peles, perfume em excesso do mais caro, brincos de diamantes e um coitado a seu lado. Ai Monteiro, estou farta desta espelunca. Temos de mudar de ares. Já não se aguenta tamanho chiqueiro, insistia a artista, conseguindo levar por diante os seus intentos.
Viste-a? Nunca mais ninguém a viu. Safou-se! Quase a cair na lama. Fazer pela vidinha, é o que é. Quase.

Fonte: Facebook

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