quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

A Filosoia do Pro-Folio (1) - Aviso por causa das coisas ou: Os homens sem cabeça

Se me cortassem a cabeça, a minha capacidade de pensar ficaria francamente diminuída.
Bertrand Russell


Da epígrafe roubada a esse gamin que dava pelo nome de Bertrand Russell, o qual, em co-autoria com Alfred North Whitehead, publicou o famoso PRINCIPIA MATHEMATICA, pode concluir-se que há toda a vantagem em conservarmos, pela vida fora, a cabeça com que nascemos. Uma sociedade de decapitados teria uma probabilidade diminuta de dar uma contribuição séria ao avanço da Filosofia e da Ciência.

Embora alguns chefes de regimes que se propuseram instalar o céu na Terra tenham preferido fazê-lo, cortando as cabeças a um aflitivo número de cidadãos recalcitrantes – logo, perigosos – também não é líquido que regimes de maior liberdade tenham sistematicamente produzido cidadãos que conservam intactas as suas cabeças. A verdade é que, como dizia Huxley, o acto de pensar é a excepção à regra de não pensar. Pensar pela sua própria cabeça, embora apoiado no esforço de pensadores antecedentes, exige trabalho e coragem. Dá muito mais fáceis dividendos ir com a corrente dominante e não causar ondas de inquietação. Em termos de carreira e de glória, chega-se lá mais facilmente, aceitando os dogmas em vigor, do que contrariando-os, quase sempre com sofrimento. Os frutos da terra caem mais provavelmente no colo dos conformistas. Ser Galileu não ajuda. Uma carreira universitária bem oleada não se faz, preferencialmente, com ideias originais, antes investigando afanosamente quais os evangelhos em vigor e seguindo-os com mansidão. O vigor de uma ideia que desarruma o statu quo incomoda os proprietários do saber, preferindo estes a devoção canina dos que seguem os caminhos já muito percorridos e confortavelmente acarinhados.

A surpresa desagradável é que esta glória conformista é fluentemente conseguida mas dura, de modo geral, muito pouco. Ao chato do Galileu chegaram quase a cortar-lhe a cabeça, mas, tendo ele insistido em conservá-la, com grande astúcia e engenho, a sua glória ficou para sempre e a dos seus perseguidores desapareceu. De Galileu, ficou o eternamente cintilante “E, contudo, move-se”, mais um punhado de leis que não esquecem, ao passo que, dos seus perseguidores, restou apenas o emblema infame: “Quot non fecerunt barbari fecerunt Barberini” (“O que não fizeram os bárbaros fizeram os Barberini”).

As nossas faculdades de letras estão cheias de dogmas inamovíveis, guardados religiosamente por guardiões determinados e rigorosamente sem cabeça, ansiosos, por sua vez, por cortar as cabeças dos refilões com o abominável hábito de pensarem por si e de declararem singelamente o que encontraram. Aqueles que gostam de encontrar o já encontrado e muito venerado têm uma glória rápida mas de curta duração. O parvo de cabeça teimosamente em cima dos ombros demora a saborear os frutos da glória, mas tem-na melhor assegurada e de muito maior duração.

Ninguém gosta tanto de cortar cabeças como aqueles que já há muito perderam a sua. Os decapitados odeiam ver as cabeças que lhes recordam as que já tiveram e de que abdicaram, a favor de um triunfo efémero. Porém, quando consentimos em que nos cortem a cabeça, é muito improvável que no-la devolvam. Ficarmos sem cabeça é um processo irreversível. Restará só uma glória aparente e um esquecimento garantido. A cabeça era, afinal, uma parte indispensável do equipamento e não o ter percebido a tempo foi um erro irreparável.

Aqui fica o aviso, por causa das coisas.

Eugénio Lisboa in De Rerum Natura

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