sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

A banalidade do mal e o sabor dos anos que passam

“Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo o dia.”
José Saramago



1. Passou o Natal das ocas farturas. Por comodidade e interesse, o Natal comercial tem varrido da memória dos homens o verdadeiro Natal, menos fantasioso, aquele em que Herodes, o Grande, ao saber do nascimento do Rei dos Judeus, mandou assassinar todos os recém-nascidos em Belém, para varrer o alegado concorrente. Segue-se a passagem de ano e é tempo do habitual balanço.

Em 2017, Portugal tornou-se moda para os turistas. Em 2017, assegura a santa madre Estatística, cresceu a economia, cresceu o emprego e registámos o mais baixo défice desde 1974. Em 2017, saímos do procedimento por défice excessivo e recebemos bulas purificadoras das agências de rating. Em 20017, um dos diáconos do totalitarismo financeiro, mas nosso, arrebatou o ceptro do Eurogrupo.

Prestes a findar 2017, o parecer do Tribunal de Contas sobre a Conta Geral do Estado de 2016 foi claro: de 2008 a 2016, foram-nos extorquidos 14,6 mil milhões de euros para acudir aos desmandos de banqueiros e amigos, soltos e impunes. Em 2017, os incêndios florestais fizeram 111 mortos e 350 feridos.

Em 2017, um político que foi de férias quando meio Portugal ardia, considerou saboroso o ano que finda.

Imagino como seria cómoda a vida de um governante que não se importasse com nada nem ninguém. Mas será possível governar sem se importar? Será possível governar sem a capacidade de nos colocarmos na pele daqueles que não conhecemos, mas sofrem? Será possível governar sem amar? No coração de quem ama, os êxitos efémeros não apagam o sofrimento perene nem as alegrias superficiais afastam a dor mais funda.


2. Felizmente recuperado das vertigens e falta de equilíbrio que a síndrome vestibular aguda lhe provocou, o ministro Tiago Brandão Rodrigues foi à Chamusca e caiu do cavalo da demagogia. Embalado pelo trote das referências à “metodologia expositiva” (Estado da Educação 2016, CNE, págs. 7, 27 e 28), alegadamente usada em excesso pelos professores, e instado a pronunciar-se sobre a matéria (PÚBLICO, 15.12.17), passou ao galope: “...esses dados dizem respeito ao ano lectivo 2015-2016, cujo início foi ainda da responsabilidade do anterior Governo. Tivemos a oportunidade de, sabendo nós como o estado da educação se apresentava nesse ano lectivo, poder desenvolver novas políticas públicas para dar resposta à estaticidade das salas de aula...”

Estática esteve a leitura do relatório por parte do patusco ministro. É que “esses dados” referem-se a 2012, como está no relatório que Tiago não leu. E a poderem, inquisitoriamente, ser ligados de modo isolado a algum Governo, então seria... ao do PS (Lurdes Rodrigues e Isabel Alçada).


3. A 19 deste mês, a página institucional da DGAE ofereceu-nos um texto de antologia propagandística sobre as inovações, velhas de décadas, do secretário de Estado João Costa, autor da prosa. Sob a epígrafe “Autonomia, Liderança e Participação”, disse-nos João Costa:

“O insucesso não é, pois, o problema de uma taxa que queremos reduzir, mas sim o problema de qualidade das aprendizagens e de justiça social que precisamos de resolver.”
O engenho ensaísta do secretário de Estado antecipou uma probabilidade inovadora: a taxa pode aumentar mas o insucesso diminuir. É uma questão de reescrever o que entendemos por qualidade das aprendizagens. E a caneta pedagógica é ele que a tem.


4. A secretária de Estado Alexandra Leitão, em representação do Governo, assumiu o compromisso de negociar com os sindicatos o modelo da recomposição da carreira dos professores, tendo por referência o actual estatuto, por forma a ser possível a recuperação do tempo de serviço. No exercício negocial em curso, o Ministério da Educação divulgou números falsos sobre as correspondentes implicações financeiras, com o óbvio intuito de iludir a opinião pública. Este procedimento é próprio de aldrabões. 

Apesar de deselegantes, há momentos em que determinadas palavras têm que ser usadas.

Santana Castilho
in Público, 27/12/2017

sábado, 16 de dezembro de 2017

Opinião - Faltam Expressões no 1.º ciclo

Ao ler o artigo de opinião do Alexandre Henriques no Público, não podia deixar de concordar mais com ele. Está na hora de dotar as Escolas do 1º Ciclo (material e infraestruturas) de forma a que possam dar cumprimento aos programas de todas as disciplinas que fazem parte da Matriz Curricular.


Os vossos filhos têm Expressão Dramática, Musical, Físico-Motora e Plástica no 1.º ciclo, sem ser em atividades extracurriculares? Sabiam que é obrigatório os alunos usufruírem de pelo menos três horas semanais de Expressões Artísticas e Físico-Motoras no 1.º ciclo e em tempo de aula?

É isso que acontece nas escolas dos vossos filhos?

No ano letivo passado, quando surgiram as provas de aferição no 2.º ano de escolaridade destinadas às Expressões, aconteceu um fenómeno muito interessante. Foram vários os pais e diretores que se queixaram e questionaram o Ministério da Educação de como iriam fazer a prova de Atividade Física sem terem o material necessário. Lembro-me particularmente de ver uma diretora na televisão, manifestamente chateada e indignada, questionando o absurdo de não ter condições para realizar a prova.

Absurdo foi ver essa diretora e outros que tal que, indiretamente, assumiram o incumprimento do programa do 1.º ciclo, que desrespeitaram as orientações do Ministério da Educação e, acima de tudo, que ignoraram a importância das Expressões e as fases sensíveis que os alunos atravessam entre os 6 e os 10 anos de idade.

Absurdo foi, semanas antes da prova, lembrarem-se que as Expressões afinal existem, apressarem-se em aulas “treino” para depois da sua realização voltarem ao esquecimento do costume.

Enquanto professor, compreendo que o programa do 1.º ciclo é extenso, é desproporcionado (mérito de Nuno Crato), não dá tempo para tudo e, ainda por cima, durante alguns anos houve exames no final do 4.º ano que levaram os professores a dar preferência ao Português e à Matemática. Afinal, os exames eram quem mais ordenava nas escolas do 1.º ciclo.

Enquanto professor, compreendo que falta(va) material e infraestruturas para lecionar as Expressões com a dignidade e exigência que merece e necessita.

Enquanto professor, compreendo que existem certas áreas que socialmente são vistas como mais importantes e que, por isso, é natural que os professores abdiquem de outras que são vistas como de segunda ou de terceira...

Mas, enquanto pai, cidadão deste país e também enquanto professor, não consigo compreender como é que existem docentes que, depois da prova de aferição do ano passado, depois de se queixaram e exigirem condições, voltaram ao silêncio do deixa andar, do voltar ao antes, ao antes que motivou tantas queixas.

Enquanto pai, cidadão deste país e também enquanto professor, não consigo compreender como é que existem diretores que voltaram ao silêncio cúmplice, aceitando o incumprimento de algo que é tão obrigatório como o Português ou a Matemática.

Enquanto pai, cidadão deste país e também enquanto professor, não consigo compreender como é que o Ministério da Educação e a Inspeção-Geral da Educação aceitam que tal seja assim, depois de terem conhecimento de comunicados de várias associações, denunciando que continuam a existir escolas que não cumprem a legislação.

Enquanto pai, cidadão deste país e também enquanto professor, não consigo compreender como é que a Escola ignora o facto de Portugal ser o quinto país com a maior taxa de obesidade da OCDE em crianças e jovens até aos 15 anos e que na prova de aferição de Expressão Físico-Motora, mais de um terço não atingiu os objetivos mínimos nos jogos infantis.

Não tenho dados sobre o número de alunos que não usufruem do que lhes é devido, mas sei que o problema existe e infelizmente conheço casos concretos. Por isso comecei este artigo com perguntas para que quem lê estas linhas diga se a sua realidade me dá ou não razão.

Sei que muitas escolas e professores cumprem com o que lhes é exigido e este artigo de opinião não é justo para eles, mas não devia haver dúvidas, não devia haver um único caso em que um currículo não seja efetivamente cumprido.

Sou da opinião que o 1.º ciclo é o mais importante de todo o Ensino Básico, é onde se colocam os alicerces de todo o edifício da aprendizagem. Os alunos não podem continuar a chegar ao 2.º ciclo sem as bases essenciais para o cumprimento do seu programa.

Termino com um apelo à comunidade educativa – exijam, exijam o cumprimento da matriz do 1.º ciclo, exijam as condições para o seu cumprimento, exijam que a Escola Pública não deixa ninguém para trás, exijam que a Escola Pública não ignore uma área curricular fundamental para o desenvolvimento social, físico e cognitivo das nossas crianças.

A Escola Pública não são apenas os alunos, a Escola Pública não são apenas os professores, a Escola Pública somos todos nós e todos nós temos a obrigação de não pactuar com este silêncio.

Matriz Curricular do 1.º Ciclo

sábado, 9 de dezembro de 2017

"Os cargos são obrigatórios?" e outros mitos da Administração Escolar

Trago hoje um artigo publicado há algum tempo pelo Luís Braga no ComRegras, que reflete um pouco sobre a aplicação da legislação nas nossas Escolas. Este artigo deve servir para todos pensarmos e revermos a forma como encaramos certos mitos e inverdades que por vezes são "criados".

Quando se anda há mais de 22 anos por escolas (e há 26 obrigado à reflexão sobre legislação educativa e a aplicá-la) colecionam-se histórias engraçadas sobre a forma como as escolas, sempre cheias de palavrório bonito sobre Democracia, olham a Lei e os direitos.




Algumas, bem absurdas, são resultantes de dificuldades em aceder aos textos (tentem arranjar um ECD completo com as suas dezenas de alterações, e percebem). Outras são muito cretinas, mas aparecem em locais que, afinal, se dizem espaços de educação para a cidadania democrática, mas que, na sua prática quotidiana não tiram consequências do é que vivermos num Estado de Direito, subordinado à Constituição e à Lei e baseado em princípios de respeito pelas liberdades cidadãs.

Outras, são simplesmente fruto de repetição acrítica de mitos administrativos. Alguém ouviu dizer a alguém, que também ouviu, mas nunca realmente leu, que era para ser assim e, porque dá jeito a alguém, é assim que se faz e ninguém vai verificar. A tolice permanece consolidada pelo suposto costume (que não faz lei, ao contrário do que se julga).

“Saber de leis” ou usar o Direito…?

Noutros países, Direito e Educação relacionam-se com mais harmonia. Os dirigentes escolares estudam realmente Direito e não “sabem de leis”: isto é, não leem um rol de normas concretas mutáveis, mas estudam regras de interpretação e integração jurídica gerais que lhes dão ferramenta para uso sistemático do Direito.

Aliás, sem maçar muito, convém dizer que, muitas vezes, se faz uma confusão de base entre “leis” e outras coisas (uma circular não é lei, um despacho normativo, também não, e uma portaria realmente é um regulamento, que se subordina a uma qualquer Lei e cujo valor normativo encerra, por isso, uma certa limitação, o que faz com que não tenha tão grande valor isolada). Os regulamentos internos das escolas não valem nada, sem conformidade com as leis que habilitam à sua feitura e, por isso, é preciso ter cuidado com o que lá se escreve sem olhar à floresta legal envolvente.

A autonomia proclamada das Escolas agravou o problema. Até já ouvi dizer disparatadamente, até em discussões sobre coisas importantes, que o Código do Procedimento Administrativo, ou uma qualquer outra Lei, não interessa nada porque “a escola é soberana”, colocando os estabelecimentos de ensino ao nível de um órgão de soberania que, diz a Constituição, tem um rol limitado (Presidente, Governo, Assembleia e Tribunais).

Depois, não admira que tantas decisões das escolas e das entidades desconcentradas e centralistas do Ministério da Educação tenham enterros bastante inglórios nos tribunais, quando alguém se queixa.

Tendo trabalhado noutro Ministério (Administração Interna, 6 anos) tenho consciência aguda de como a dita Administração educativa tem comparativamente fragilidades profundas no seu funcionamento e no seu enquadramento, como administração que respeite realmente os cidadãos (os alunos, as famílias e os trabalhadores).


Mitos e música de ouvido

E isto porque se rege por música de ouvido normativa, em muitos casos. Diz-se que é assim, mas não se mostra. A DGESTE e a DGAE e outras “tutelas” até às vezes chegam a fazer uns pareceres e circulares (muitas vezes nem escritos por juristas) e a “tutela” falou e …. “prontos!”. Às vezes, nem isso.

E dessas práticas surgem mitos. Os 3 mais vezes repetidos e perigosos nas escolas são talvez os seguintes:
  • O Código de Procedimento Administrativo não se aplica às escolas ou a certos casos concretos (muitos se rirão que ainda haja gente a pensar assim, mas ainda há dias ouvi um sermão de um vetusto defensor da “ausência de lei” escolar, por conta de eu invocar essa lei para salientar que pode haver impedimentos, escusas e suspeições no exercício de cargos nas escolas). Uma lei essencial para a defesa dos direitos dos administrados é assim despejada, por indesejável, de muitas escolas.
  • Os órgãos têm de fazer regimentos a prever todos os aspetos do seu funcionamento (há escolas que têm regimentos para todos os seus órgãos, alguns com dezenas de páginas; há dias vi uma com 29 regimentos publicados no site, que até incluem normas contrárias ao CPA e que, na generalidade, se repetem uns aos outros);
  • Os cargos são de aceitação obrigatória por docentes.
O mito 1 é só ignorância (o legislador não precisava, mas até incluiu no Regime de Autonomia – hoje DL 137/2012 – um artigo só para estipular isso, o artigo 68º).

O 2 é pura perda de tempo inútil (até por causa da resposta ao mito 1, já que o CPA inclui uma série de normas sobre funcionamento de órgãos coletivos que evitariam tais trabalheiras).

O 3 é mais grave porque significa uma desconsideração total pelo facto de Portugal ser um Estado em que vigoram direitos fundamentais de exercício individual.

Cargos obrigatórios?


Desde que me conheço por professor que ouço dizer isso: os cargos são de aceitação obrigatória. Antecipando uma conclusão, posso dizer que, depois de alguma pesquisa, me parece (e, também não sendo jurista, espero prova em contrário e correção fundamentada) que não. Pelo menos, não todas as funções que, por vezes, se juntam sob a capa da designação única de cargo. Porque esse é o primeiro problema.

Por exemplo, diretor de turma não é um cargo porque é uma função inerente à própria função docente. Recusar exercer a função de diretor de turma seria o mesmo que recusar corrigir testes ou até dar aulas a uma certa turma. Seria a negação da própria função porque é parte da função (e há normas específicas a dizer isto). Aliás, é-se diretor de turma fruto de uma simples distribuição de serviço. Recusar ser DT seria um ato de indisciplina laboral, a não ser que o motivo fossem impedimentos, escusas ou suspeições. Por exemplo, podia recusar-me a ser diretor de turma que incluísse a minha sobrinha (mas essa recusa é óbvia e resultaria apenas de nem dever ser designado).

Mas o mesmo não se pode dizer de outros cargos em que a palavra “cargo” se usa em sentido mais próprio: os diferentes coordenadores. Pode-se simplificar, explicando que toda gente, que aceita ser contratado ou foi admitido à função docente, deve contar ser diretor de turma, como conta ter de dar aulas. Mas, não se pode dizer que alguém tenha de iniciar a carreira docente a prever, como obrigação inerente à função de docente, a de coordenar outros docentes num órgão de administração.

Um docente tem capacidade profissional para ser diretor de turma, só por efeito da sua formação inicial, mas o exercício de cargos de outro tipo até pode exigir formação complementar específica e não se pode presumir, contra a liberdade individual, que todos queiram ou até possam exercê-los.E ter formação específica não obriga necessariamente a fazer o que não se quer.

Um médico militar, em princípio, não se alista para saltar de para quedas e, por isso, não pode ser obrigado a saltar…. a não ser que aprenda e… queira (e mesmo a condição militar implica limites ao que pode ser obrigado a fazer). E a escola não é a tropa….já começa a haver por lá “coronéis” mas não ainda não chegamos à militarização brasileira.Aliás, a ideia de obrigar ao exercício, em cargos com componentes de coordenação, é particularmente estúpida pelo que representa de desvalorização da motivação na geração de desempenhos de qualidade. Ainda que fosse obrigatório, é má ideia obrigar…


Como podiam os cargos ser obrigatórios...

Para que um docente tenha a obrigação de aceitar um certo “cargo” (desses, em sentido mais preciso) teria de haver 2 condições normativas: existir uma norma legal (em sentido estrito) expressa a prever essa obrigação (qualquer coisa do tipo: é obrigatório aos docentes exercer todos os cargos para que sejam eleitos ou nomeados) e, ainda que exista essa, (e para que a norma inicial sirva para algo) existir outra norma a prever um qualquer castigo a quem não cumprir esse dever.

Por isso, primeiro passo, ir verificar os deveres dos professores. Os deveres dos professores estão no Estatuto da Carreira Docente e devem ser complementados pelos deveres de qualquer trabalhador em funções públicas listados no respetivo “código” (a LTFP). No ECD encontram-se deveres gerais, para com os alunos, para com a escola e outros docentes, para com os pais e outros docentes (estão no artigo 10º e 10º A, B e C com múltiplas alíneas). Por lá aparece muito dever de reflexão, cooperação, participação, colaboração, etc. mas nenhuma norma impositiva a dizer “deve exercer e não pode recusar os cargos para que for eleito ou nomeado.” Indo à legislação mais geral, que abrange todos os trabalhadores em funções públicas (Lei Geral de Trabalho em Funções Públicas – LTFP, de que o ECD é uma especificação, dado que os docentes são trabalhadores em funções públicas com carreira especial) o quadro é semelhante.

Os deveres gerais do trabalhador estão previstos no artigo 73º da LTFP que, no seu número 2, prevê uma listagem de deveres gerais dos trabalhadores (que define depois) e que são a) O dever de prossecução do interesse público; b) O dever de isenção; c) O dever de imparcialidade; d) O dever de informação; e) O dever de zelo; f) O dever de obediência; g) O dever de lealdade; h) O dever de correção; i) O dever de assiduidade; j) O dever de pontualidade.

Sem alongar, parece que só o dever de zelo ou o dever de obediência poderiam encerrar direta, ou indiretamente, a tal obrigação de aceitar e exercer cargos. Mas a sua interpretação correta e adequada (lendo as definições e a doutrina interpretativa) leva a concluir que deles não se pode deduzir que os docentes possam ser obrigados a exercer todo e qualquer cargo para que sejam eleitos ou nomeados.
E onde está a leizinha?

Assim, parece resultar que o tal mitológico e consuetudinário dever de os docentes aceitarem todos os cargos para que sejam eleitos ou nomeados não resulta de lei, que se tenha topado nesta pesquisa, que se assume sumária. E esta conclusão resulta da leitura simples das normas mais acessíveis e sem sequer entrar pelos domínios das doutrinas jurídicas sobre direitos fundamentais e sobre os limites à limitação de direitos dos trabalhadores do Estado. Que trabalham para o Estado, mas não tem a sua liberdade possuída por ele. Até para os presos há limites para o que se pode obrigar a fazer!

Em termos simples, seria correto que, num Estado de Direito, alguém exercesse a sua liberdade de escolher profissão e escolhesse ser professor e fosse obrigado a nunca exercer ou reduzir o exercício do essencial da profissão (contactar com alunos), por via de uma suposta obrigação, que não poderia recusar, (cuja norma impositiva, para mais, não se encontra) de exercer cargos que o afastam da profissão que escolheu e cuja autonomia técnica o empregador público até tem o dever de respeitar?

E, digo isto, com todo o respeito por opiniões contrárias, mas só das que se arrisquem ao que me estou a arriscar ao escrever isto (o contraditório, isto é, ser desmentido com provas) e que indiquem a norma em que se baseiem para afirmar o contrário.

Recentemente disseram-me que na DGESTE haverá quem pense que, por exemplo, os docentes com formação em administração escolar ou educacional são obrigados a aceitar exercer o cargo de coordenador de departamento (ou subcoordenador que, para o efeito, é a mesma coisa).

Caso que abrange esses e todos os propostos pelo diretor, se não houver suficientes, depois de eleitos num processo, em que até chegam a ser propostos a eleição contra vontade, por força de uma lei absurda.

E isto, ainda que o curso seja anterior à lei que (abusivamente) obriga a propô-los, o curso não tenha sido pago pelo Estado e não queiram, no âmbito da sua liberdade, fazê-lo (isto é, contra a escolha que fazem, no âmbito legítimo da sua liberdade de escolha da profissão).

Tenho, cá para mim, que isso até viola o artigo 72º da LTFP relativo a garantias do trabalhador (em funções públicas) que diz, no nº 1, que “É proibido ao empregador público: a) Opor-se, por qualquer forma, a que o trabalhador exerça os seus direitos, bem como aplicar-lhe sanções disciplinares ou tratá-lo desfavoravelmente por causa desse exercício;”

Gostava que alguém, dos que acham que existe obrigação de exercer cargos a que se não candidatam (uma violência contra o regime de liberdade e democracia que consta dever existir nas escolas e no país), me explicasse como fundamenta tal ideia e, já agora, como acha que consegue obrigar quem se recusar?

Em que norma basearia o processo disciplinar? Ou seria que ía coagir ou, quem sabe, torturar? A ideia do prejuízo na carreira ou avaliação também é falsa (e, já agora, qual carreira? onde está escrito o prejuízo?).

Por isso, tendo a sorte de não ser eleito graças ao meu mau feitio que não cria muitos votantes ansiosos em eleger, nunca precisei de invocar realmente estas reflexões, mas deixo-as para uso e eventual desenvolvimento por quem nelas possa fazer proveito.

Além disso, se posso ser obrigado a exercer um cargo por ter feito um curso (tirado antes da lei criar a tal “obrigação”), ou porque alguém votasse em mim sem eu me candidatar, porque é que a lei diz que coordenadores de estabelecimento, adjuntos e membros de comissão administrativa provisória devem preferencialmente ter o tal curso e nunca ninguém se lembrou deste rapaz estudado (para mais que estudou mesmo, sem creditações ou equivalências).

Curiosamente, esses cargos até dão algumas vantagens remuneratórias… e não só longas reuniões cheias de vacuidades..

Enfim, coisas engraçadas das escolas. Talvez por isso, os mitos sejam alimentados por quem se aproveita da ignorância e apatia dos outros.

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Nós, os professores

Não resisti a publicar este texto de opinião de Francisco Teixeira, no Público! Vale a pena ler este artigo, que a seguir se reproduz.


Tem-se assistido nas últimas semanas, particularmente a partir da greve e manifestação de 15 de novembro, a um processo de autêntico bullyingcomunicacional contra os professores portugueses do ensino básico e secundário. O cenário é esmagador: não há personagem comunicacional de primeira ou terceira categorias (desde o habitual Miguel Sousa Tavares ao mais esdrúxulo psicólogo, jurista ou “comunicólogo”) que não tenha “molhado a sopa”. Mesmo os pivôs televisivos, regra geral circunspectos, sugerem orientações aos secretários de Estado, exigem firmeza, reclamam políticas, peroram sobre a carreira dos professores. O paroxismo foi atingido com José Miguel Júdice, ex-bastonário da Ordem dos Advogados e ex-libris do lumpem moral das grandes sociedades de advogados, quando chamou aos professores uma “raça”, inaugurando uma nova categoria de racismo ou fobia, digna do DSM: o racismo ou fobia profissionais. Disse Júdice que “os professores é uma raça [sic] muito excepcional... são pessoas diferentes do resto da humanidade”.

Há cerca de um mês publiquei um artigo aqui no PÚBLICO onde citava António Arnaut a defender que os médicos deveriam ter carreiras profissionais equivalentes às dos magistrados. Ora, se há especificidades no estatuto profissional dos magistrados são a autonomia profissional, a inamovibilidade e o muito razoável estatuto remuneratório. Escrevia eu nesse texto que esse raciocínio se devia aplicar com mais razoabilidade aos professores, já que a escola pública e os professores constituem a mais decisiva das infraestruturas democráticas, mais ainda que os médicos e o SNS. Sem os professores, ou com a sua diminuição, mais cedo ou mais tarde tudo rui. Descontando os júdices e os quintinos, a questão principal do debate sobre o papel dos professores na sociedade portuguesa diz respeito, justamente, à natureza do seu estatuto profissional. Vamos então por aí.

A profissão de professor é essencialmente ética. Diz respeito a fins pessoais e sociais a alcançar, dos alunos, da escola e das várias comunidades a que se encontra conectada. De modo amplo, os fins que se jogam nas suas tarefas profissionais são os que estão estabelecidos na Declaração Universal dos Direitos do Homem, na Constituição da República Portuguesa e na Lei de Bases do Sistema Educativo. Pelo meio, bem entendido, há toda uma diversidade de especificidades e tensões. Desde logo, a principal responsabilidade dos professores é para com os seus alunos concretos, o que só pode ocorrer no contexto e assumindo aquela que é uma das suas principais características profissionais, a autonomia pedagógica e científica, sem as quais não é possível ser professor. Bem entendido, esta autonomia é de natureza tensional. Está em tensão com as comunidades locais, as direções das escolas, as demandas governamentais, os próprios interesses individuais dos alunos. A autonomia profissional é uma pré-condição básica da profissão, sem a qual não é possível responder à virtualmente infinita complexidade e plasticidade das situações pedagógicas concretas, à permanente evanescência relacional, cada dia, em cada sala de aula. A autonomia profissional dos professores nada tem a ver com fixações corporativas mas, pelo contrário, é condição de possibilidade de resposta ética e prática a cada um dos seus alunos. Sem autonomia profissional não há professores, mas simplesmente funcionários, repetidores, como se não houvesse alunos.

A somar a esta complexidade, as tecnologias pedagógicas são constitutivamente instáveis e não recolhem, nem podem recolher, consenso entre os profissionais da educação. Mais uma vez, o que funciona nuns casos pode não funcionar nos outros. As relações causais entre as ações dos professores e a configuração das aprendizagens não são suscetíveis de ser estabelecidas direta e positivamente. O que se ensina hoje, a ação de hoje, muitas vezes só refulge tardiamente e em conexão com eventos e relações que à partida não faziam sentido, mas que, de repente, começam a funcionar! Simplesmente não há como estabelecer tecnologias positivas de ensino-aprendizagem. Os jovens não se deixam padronizar.

Assim sendo, e sem aprofundar o assunto, a autonomia profissional dos professores está em tensão especial com a ideia vulgar de avaliação profissional, vista de um ponto de vista de prestação de contas metricamente definida, como comummente é pensada nas empresas e nas profissões imediatamente instrumentais, e que configuram o senso-comum sobre o assunto. Sendo cada aluno, cada turma, cada escola e cada professor âmbitos específicos de responsabilidades, necessidades e respostas éticas e pedagógicas, não é possível estabelecer referenciais e padrões objetivos do que seja um bom professor, a não ser de modo negativo. É certamente possível definir-se o que é um mau professor, mas é impossível definir o que é um bom professor. Um bom professor num sítio pode ser um mau professor noutro, o que não faz dele integralmente mau ou excelente. A ideia segundo a qual é possível estabelecer um padrão objetivável do que seja um bom professor ou o desvio relativamente a esse padrão conduz, inevitavelmente, à perda da autonomia profissional e à sua calcificação, impedindo-o de responder às necessidades dos seus alunos, substituídas pelas necessidades do sistema de injunções métricas-avaliativas. Porque é que isto é assim? Porque os professores lidam com crianças e jovens, pessoas em estado especialmente plástico do ponto de vista emocional, cognitivo e social; porque lhes compete ensinar criando âmbitos relacionais sumamente complexos; porque os seus saberes, essencialmente práticos, estão em mutação permanente, quer do ponto de vista especificamente científico, quer do ponto de vista metodológico e ético; porque, justamente, o entorno da escola é o mundo todo e a posição do professor enquanto interface entre as crianças e os jovens e o mundo é do tamanho dessa complexidade. Não há, então, nada mais difícil e complexo que ser professor, e tanto mais quanto mais jovem é o seu aluno.

Quer isto dizer que não é possível avaliar os professores? De todo, não. A questão é o que entendemos por avaliação docente. Já vimos que se “avaliação” quer dizer medir a distância de cada prática relativamente a um padrão profissional objetivo e “excelência” (não há palavra mais repugnante, no contexto da profissão de professor), a resposta já foi dada. Não, isso não é possível. Nem desejável. Mais do que isso, a “pulsão avaliativa” e observacional dos políticos é quase sempre mecanismo de legitimação das políticas e não instrumento de melhoria, correspondendo antes à paranoia panótica internalizada na sociedade de transparência e de vigilância integrais em que nos transformamos. Então como avaliar os professores? A coisa é técnica e temo que os poucos leitores que tenham conseguido chegar a este parágrafo não sigam daqui para a frente. É sempre mais fácil ouvir o júdice ou o quintino. Mas a resposta, de muita gente de várias áreas de especialidade, e minha, é que a avaliação dos professores não pode senão consistir num sistema de interpretação e diálogo permanentes entre os professores e as suas práticas. Um sistema de interpretação permanente não liga com a ideia de prestação de contas e medição categorial. Eu sei. E ainda bem. Como se faz isso, então? Instituindo, como está instituído, mecanismos de mediação e debate pedagógico nas escolas e fora delas, a que os professores tenham que recorrer, como recorrem... desde que lhe deem tempo. Sem tempo nada feito. Não há avaliação possível. Nem interpretativa, nem objetiva (que não é avaliação).

E que tem tudo isto a ver com as carreiras? A carreira profissional dos professores não é um sistema de antiguidade. Isto já foi dito mil vezes, mas o seu contrário foi dito um milhão. Mas mais vale dizê-lo, então, mais uma vez. A progressão na carreira dos professores depende de uma acumulação necessária de três fatores: avaliação de desempenho; formação contínua; tempo de serviço. E a progressão ao quinto e sétimos escalões depende de vagas, estabelecendo uma barragem administrativa à progressão. Também não é verdade que todos os professores tenham as mesmas funções. A supervisão pedagógica e a coordenação dos departamentos científicos/pedagógicos são exclusivos dos professores do quarto escalão ou superiores. É certo, e assim é que está bem, que os coordenadores de departamento não são, nas escolas básicas e secundárias, superiores hierárquicos dos outros professores, mas apenas coordenadores das equipas pedagógicas, desde logo porque são eleitos (de entre os professores do quarto escalão ou superiores que sejam detentores de experiência relevante ou formação especializada). Mas sim, é verdade que, em teoria, todos os professores podem chegar ao escalão mais alto da sua profissão, nem que seja nos últimos anos de serviço. E isso tem uma razão básica para ser assim. E a razão é económica e está bem que assim seja.

Como vimos acima, o professor é detentor de competências profissionais especialmente complexas. Para além das competências do seu campo científico (que não para de evoluir e lhe exige uma atualização permanente), são-lhe exigíveis competências culturais e emocionais muito amplas, susceptíveis de lhe permitirem uma compreensão, participação e relação aprofundadas com os seus contextos sociais, culturais e políticos, a começar pelo contexto da sua escola. Sem essas competências amplas o professor transformar-se-ia num mero repetidor, alienando o aluno, treinando-o na obediência e, portanto, deixando de ser um professor. Para que possa cumprir adequadamente estas exigências os professores precisam de tempo. De tempo para si, para o cultivo daquelas competências culturalmente complexas, e de dinheiro. O saber custa dinheiro, como se sabe, e não se pode exigir aos professores que sejam tudo, literalmente tudo (!) e, a seguir, pagar-lhes como operários com funções repetitivas, instrumentais e operacionalmente simples. Os professores têm de ser razoavelmente pagos, para a média do país. Salários que permitam aos professores apenas uma relação mínima com o seu saber e formação é a opção de um saber pobre, mecânico, medíocre e sem futuro. A ignorância e o anquilosamento culturais são mais caros que professores medianamente pagos.

Ora, esta é a grande opção que o Partido Socialista tem que fazer. Ou quer uma escola pública qualificada e democrática, o que implica professores qualificados, autónomos e dotados de saberes complexos, com requisitos salariais razoáveis (tendo em conta a média do país), ou quer uma escola pública autoritária, com professores hierarquizados, vigiados, desprovidos de autonomia profissional, mal pagos, proletarizados e, portanto, tendendo para a mediocridade profissional (como queria Maria de Lurdes Rodrigues). Em suma, ou quer uma escola pública decente ou quer uma escola pública para pobres, que sirva essencialmente a reprodução da desigualdade.

Temos, por último, a magna questão de haver ou não dinheiro para uma escola pública decente. O governo anterior vendeu com sucesso a ideia que não havia alternativa a um país pobre, feito de baixos salários, com funções públicas vegetarianas, quando não completamente destruídas. O argumento é que não havia dinheiro. Muitos portugueses convenceram-se disso. Tantos que a PAF até ganhou as últimas eleições. Mas confirmamos, entretanto, que o governo de Passos e Portas estava enganado. Afinal havia alternativa, ao governo anterior e às suas políticas. Mas, afinal, lá regressou pela janela a mesma conversa de que, afinal, não havia mesmo alternativa, ou, a haver, seria assim uma alternativazinha. O PS e os partidos da esquerda parlamentar têm que se decidir, para que a verdadeira alternativa não seja a implosão do atual sistema partidário, a que Portugal conseguiu escapar pelos pingos da chuva, ao contrário do resto da Europa. Dizem que Costa é um génio da política e Centeno o Mourinho das Finanças. Com a ajuda do BE e do PCP só posso estar convencido que não deixarão de nos surpreender positivamente.

Entretanto, os bullies destes dias não deixarão de ser surpreendidos pela resiliência e saber cívico dos professores portugueses.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Lendas e mitos sobre a carreira dos professores (2)

O Paulo Guinote no seu blog "O Meu Quintal" vem muito assertivamente desmistificar mais uma ideia errada que porventura possa circular por aí.

Porque tem havido imensa desinformação acerca do “topo” salarial da carreira docente, comparando a sua extensão no tempo a outras carreiras da administração pública, é bom que se tenha o cuidado de ver com atenção se os valores são idênticos.

Deixo em seguida os quadros relativos ao 9º (o topo real da carreira docente neste momento) e o 10º escalão (mítico patamar que talvez alguns consigam alcançar com o descongelamento) da carreira docente e o quadro da tabela remuneratória “única”.





Não é bem a mesma coisa, certo?

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Lendas e mitos sobre a carreira dos professores (1)

Achei muito interessante o comentário feito por "sr.prof.ze" no blog ComRegras e não poderia deixar de trazê-lo aqui, porque ele ilustra na perfeição o sentimento que neste momento é sentida por toda a classe.


Não é possível contar todo o tempo de serviço dos professores?

Façamos uma breve análise do que aconteceu a partir de 2006 em que a carreira docente era de 26 anos.
– Em 2007 passou para 31 anos – 4 anos mais para atingir o fim da carreira (oferta de Maria de Lurdes Rodrigues).
– Em 2009 passou para 35 anos – e mais 4 anos para atingir o fim da carreira (nova oferta de Maria de Lurdes Rodrigues).
– Em 2010 foi efetuado o “reposicionamento” na nova carreira em que os professores foram colocados (em média) 4 anos atrás do seu tempo real de serviço – mais 4 anos para atingir o fim da carreira (oferta de Isabel Alçada).
– De 30 de agosto de 2005 a 31 de dezembro de 2007 foram 854 dias de congelamento – cerca de 2,5 anos a mais para atingir o fim da carreira (oferta de José Sócrates).
– De 1 de janeiro de 2011 a 31 de dezembro de 2017 são 2557 dias de congelamento – mais 7 anos para atingir o fim da carreira (oferta conjunta de José Sócrates, Passos Coelho e António Costa).

Desde 2006 foram-me retirados 21,5 anos à carreira.
A atual carreira docente é de quase 48 anos.

Os meus cabelos estão brancos e o meu carro tem centenas de milhar de quilómetros.
Não me venham dizer que o cronómetro esteve parado.

Na carreira docente não há mérito nas progressões?

Ao longo destes anos tive milhares de alunos, fiz dezenas de ações de formação, os resultados subiram em todos os rankings internacionais e fui sempre avaliado.

Todos os professores atingem o topo da carreira?

Nenhum professor está atualmente no topo da carreira, o atual 10.º escalão.


Este escalão foi criado para que nos resumos estatísticos da OCDE pareça que em Portugal os professores ganham muito.

Mas o verdadeiro topo da carreira não é este 10.º escalão.
Os verdadeiros topos da carreira são os seguintes:
– Auferir uma subvenção vitalícia da Assembleia da República;
– Ter uma reforma dourada numa Gulbenkian ou Fundação Lusa Americana para o Desenvolvimento após uns anitos como Ministro(a);
– Pertencer ao conselho Nacional de Educação;
– Fazer uns estudos bem pagos sobre a Educação.

Não há dinheiro para pagar aos professores?

Mas já há dinheiro para pagar a 1400 assessores dos gabinetes ministeriais!
Já há dinheiro para pagar o SIRESP!
Já há dinheiro para pagar os roubos internos dos bancos!
Já há dinheiro para as PPP!
Já há dinheiro para pagar ao “cartel do fogo”!
Dinheiro há! Mas as negociatas e as clientelas políticas e “empresariais” têm sido muito mais importantes do que os Alunos deste País.


A Educação não é “Despesa Orçamental” mas sim Investimento!

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Os Professores - José Luís Peixoto

A propósito dos tempos que correm, recupero uma crónica de José Luís Peixoto, publicado na revista Visão de 13 de Outubro de 2011, em que nos demonstra com toda a sua mestria o que é ser professor. Ele próprio, foi professor de Inglês, durante a década de 90.


O mundo não nasceu connosco. Essa ligeira ilusão é mais um sinal da imperfeição que nos cobre os sentidos. Chegámos num dia que não recordamos, mas que celebramos anualmente; depois, pouco a pouco, a neblina foi-se desfazendo nos objectos até que, por fim, conseguimos reconhecer-nos ao espelho. Nessa idade, não sabíamos o suficiente para percebermos que não sabíamos nada. Foi então que chegaram os professores. Traziam todo o conhecimento do mundo que nos antecedeu. Lançaram-se na tarefa de nos actualizar com o presente da nossa espécie e da nossa civilização. Essa tarefa, sabemo-lo hoje, é infinita.

O material que é trabalhado pelos professores não pode ser quantificado. Não há números ou casas decimais com suficiente precisão para medi-lo. A falta de quantificação não é culpa dos assuntos inquantificáveis, é culpa do nosso desejo de quantificar tudo. Os professores não vendem o material que trabalham, oferecem-no. Nós, com o tempo, com os anos, com a distância entre nós e nós, somos levados a acreditar que aquilo que os professores nos deram nos pertenceu desde sempre. Mais do que acharmos que esse material é nosso, achamos que nós próprios somos esse material. Por ironia ou capricho, é nesse momento que o trabalho dos professores se efectiva. O trabalho dos professores é a generosidade.

Basta um esforço mínimo da memória, basta um plim pequenino de gratidão para nos apercebermos do quanto devemos aos professores. Devemos-lhes muito daquilo que somos, devemos-lhes muito de tudo. Há algo de definitivo e eterno nessa missão, nesse verbo que é transmitido de geração em geração, ensinado. Com as suas pastas de professores, os seus blazers, os seus Ford Fiesta com cadeirinha para os filhos no banco de trás, os professores de hoje são iguais de ontem. O acto que praticam é igual ao que foi exercido por outros professores, com outros penteados, que existiram há séculos ou há décadas. O conhecimento que enche as páginas dos manuais aumentou e mudou, mas a essência daquilo que os professores fazem mantém-se. Essência, essa palavra que os professores recordam ciclicamente, essa mesma palavra que tendemos a esquecer.

Um ataque contra os professores é sempre um ataque contra nós próprios, contra o nosso futuro. Resistindo, os professores, pela sua prática, são os guardiões da esperança. Vemo-los a dar forma e sentido à esperança de crianças e de jovens, aceitamos essa evidência, mas falhamos perceber que são também eles que mantêm viva a esperança de que todos necessitamos para existir, para respirar, para estarmos vivos. Ai da sociedade que perdeu a esperança. Quem não tem esperança não está vivo. Mesmo que ainda respire, já morreu.

Envergonhem-se aqueles que dizem ter perdido a esperança. Envergonhem-se aqueles que dizem que não vale a pena lutar. Quando as dificuldades são maiores é quando o esforço para ultrapassá-las deve ser mais intenso. Sabemos que estamos aqui, o sangue atravessa-nos o corpo. Nascemos num dia em que quase nos pareceu ter nascido o mundo inteiro. Temos a graça de uma voz, podemos usá-la para exprimir todo o entendimento do que significa estar aqui, nesta posição. Em anos de aulas teóricas, aulas práticas, no laboratório, no ginásio, em visitas de estudo, sumários escritos no quadro no início da aula, os professores ensinaram-nos que existe vida para lá das certezas rígidas, opacas, que nos queiram apresentar. Se desligarmos a televisão por um instante, chegaremos facilmente à conclusão que, como nas aulas de matemática ou de filosofia, não há problemas que disponham de uma única solução. Da mesma maneira, não há fatalidades que não possam ser questionadas. É ao fazê-lo que se pensa e se encontra soluções.

Se nos conseguirem convencer a desistir de deixar um mundo melhor do que aquele que encontrámos, o erro não será tanto daqueles que forem capazes de nos roubar uma aspiração tão fundamental, o erro primeiro será nosso por termos deixado que nos roubem a capacidade de sonhar, a ambição, metade da humanidade que recebemos dos nossos pais e dos nossos avós. Mas espero que não, acredito que não, não esquecemos a lição que aprendemos e que continuamos a aprender todos os dias com os professores. Tenho esperança.

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Por uma avaliação a sério do desempenho jornalístico

Tendo em conta os diversos artigos de opinião que têm surgido um pouco por toda a imprensa (escrita e online), não resisto a trazer aqui a opinião do Paulo Guinote, num artigo publicado no blog O Meu Quintal:



Nota prévia: neste texto refiro-me ao que eu considero “operacionais” de projectos que têm muito mais de político ou económico (ou de vaidade pessoal) do que efectivamente de “jornalístico” e que circulam pelas direcções e chefias de órgãos de comunicação social como se fossem uma espécie de jogadores de futebol em circulação por clubes associados aos interesses de agentes do “mercado”. Não falo de quem , nas redacções faz o seu trabalho o melhor que sabe e lhe deixam, procurando sobreviver na selva.

Para que fique ainda mais claro falo dos baldaias, dinis, fernandes ou, no caso das vaidades, de um certo tavares protegido de alguém que não se importa da sua cegueira em relação ao que levou milhares de milhões ao erário público, mas a quem confunde muito que um professor ganhe mais 100 euros ao fim do mês.

(nem sequer incluo aqui aquele tipo que adorava as boalchinhas da mlr e que andou pelo cm e pelo i, conforme lhe deram a mão…)

Falo daqueles que sistematicamente criticam os professores e insistem em considerar que a classe docente não quer ser avaliada pelo seu mérito ou pelo desempenho dos seus alunos. Que no privado é que é, que no privado é que dói muito e só vence o tal “mérito”.

E eu reverto o argumento:

O que sabemos sobre o “mérito” de algumas destas figuras? Que “enterraram” as vendas de quantas publicações? Que “valor acrescentado” (para além de cortes nas redacções e despedimentos a granel) têm estas figuras para apresentar? Qual a evolução das vendas das publicações que dirigiram ou dirigem? E não me venham com o online, porque para isso era necessário demonstrar (o que nunca vi) que aquela publicidade funciona mesmo e paga “projectos” como o Observador que, se não tivesse investidores interessados em promover uma agenda político-ideológica muito específica não teria condições para andar a contratar os despojos de outros “projectos”, enterrados pela elite que temos de directores de jornais.

Poderão estes senhores (e algumas senhoras) explicar qual a “avaliação” que têm para nos apresentar? Se forem as vendas, estamos falados… só o cm se safaria. Nem o bastião do regime escaparia e basta ver o que o balsemão vai fazer ao seu grupo de comunicação, para se perceber que o “mérito” tem pouco reconhecimento no “mercado”. E nem sequer podem falar em grande concorrência – não me digam que é o facebook que os derrotou? – porque estão quase todos em falência mais do que técnica.

O que observa quem lê jornais e revistas há 35 anos e os comprou a fio durante décadas é uma atroz endogamia entre “investidores” e alguns jornalistas em cargos de chefia, bem como uma relação pantanosa com alguns interesses económicos. Basta ver como, subitamente, ninguém se lembra da publicidade plantada pelos salgados e bavas (e mexias e tantos outros) para obterem “boa imprensa”. Alguém terá coragem de avaliar o dinheiro que entrou em certos “projectos jornalísticos” com esta origem?

Ou – já agora – porque se falou numa lista de jornalistas com certo “rasto” nos papéis do panamá, a qual depois desapareceu sem deixar o tal “rasto” visível? Será muito estranho associar isso a certas movimentações que então aconteceram entre órgãos e grupos de comunicação social? É esse o “mérito” de que falam e querem que os outros demonstrem.

Os professores desenvolvem o seu trabalho de forma transparente. Há bons, maus, medíocres, suficientes e excelentes em diversas gradações e proporções. Como em muitas outras profissões, mas há uma meia dúzia de luminárias com direito a coluna regular e voz de comando nas redacções que se acha com valor e competência para duvidar sistematicamente da sua qualidade. Os alunos melhoraram o desempenho? Foram @s ministr@s da sua estimação que fizeram leis boas. As coisas correm mal este ou aquele ano nos exames ou provas de aferição? É falta de “formação” dos professores.

Mas se um jornal apresentar sistematicamente quebra de vendas ou de publicidade já é o “contexto” que explica tudo e não a incapacidade ou incompetência de quem os dirige que é sublinhada.

O duplo padrão é a moeda corrente das análises dos baldaias, dinis e fernandes. E nem falo da diva da página qualquer coisa do espesso semanário)

Mas ainda bem que nos exigem aquilo que não praticam.

Percebem que estamos em planos éticos realmente muito diferentes.

(e aposto que, apesar de muito liberais e defensores da liberdade de opinião sem verificação à tavares, não gostam nada que se lhes aponte este tipo de coisas…)


Atualização:


terça-feira, 7 de novembro de 2017

Entrevista a António Damásio

Cada vez mais biólogo e menos neurocientista, António Damásio insiste nas humanidades para formar homens e cientistas. No seu mais recente livro dá primazia aos sentimentos como formadores de consciência e motor da ciência, e refere a necessidade de um pacto global sobre educação.


O que leva um estudante a levantar a mão quando o professor lhe fala de um tema que o intimida? Como reagirão as gerações que cresceram com as redes sociais, quando precisarem de tempo, mais tempo, do que o imediato? Estamos a viver uma crise na actual condição humana diz António Damásio no seu mais recente livro, A Estranha Ordem das Coisas, que dá prioridade aos sentimentos. Na vida, na ciência, na cultura. Horas depois de aterrar em Lisboa não esconde a emoção perante a edição portuguesa da Temas e Debates. Sorri. Pega no livro de quase 400 páginas, olha a contracapa e retrai a vontade imediata de ver tudo ali. Mais tarde confessará que é um chato com o português. Escreve em inglês, pensa em inglês, mas o português é a sua língua. Quando, ao longo da conversa, na oralidade, lhe sai um vocábulo em inglês trata de arranjar a tradução certa, sobretudo se for para descrever um sentimento. É que são os sentimentos o que está antes de tudo no livro que dedica à sua mulher, Hanna Damásio, e na conversa onde haverá de dizer, já desligado o gravador, que também fala alemão e namora em italiano. "É a língua do amor", refere. Como aprendeu? "A ouvir as óperas de Verdi."

Começa este livro, que vem na continuidade dos anteriores, por esclarecer o que chama de uma “ideia simples”, “como usamos os sentimentos para construir a nossa personalidade”. Peço-lhe que descreva, brevemente, o protagonista deste A Estranha Ordem das Coisas, os sentimentos?


Há a realidade científica daquilo que penso que são os sentimentos, mas há também uma mais alargada ligada a um tema que estamos [com a mulher, Hanna Damásio] a tratar por estes dias para uma conferência sobre ética. Parte dos sentimentos que temos como experiência têm a ver com as coisas mais valiosas da nossa vida; com todas as coisas sobre as quais podemos ter uma valência, as que verdadeiramente contam: vida, doença, dor, sofrimento, morte, desejo, amor, cuidado com o outros [to care]. E, ao mesmo tempo, crimes, medos, raivas, ódios, que têm a ver com o contrário das boas coisas da vida e que podem levar à perda [da vida], e, se não à perda da vida, ao sofrimento. Praticamente todas as coisas que governam ou desgovernam a nossa vida são normalmente transmitidas por uma valência de bom ou mau; de agradável ou desagradável, de recompensa ou punição. São essas que constituem o grande personagem dos sentimentos. Os sentimentos são representações do estado da nossa vida, mas representações qualificadas. Um dos problemas que mais me inquietam é essa impossibilidade que as pessoas têm tido de perceber que a inteligência – ou a nossa mente – vai só até um certo ponto e a partir daí tem de ter uma qualificação. Essa qualificação aparece em termos de agradável ou desagradável, de bom ou de mau, e é isso que faz a grande distinção entre a inteligência humana no sentido mais completo e a mente humana. À inteligência artificial, por exemplo, falta isso. Infelizmente as pessoas não se têm dado conta. Sou um adepto de inteligência artificial e tudo o que esse campo de tecnologia e de ciência nos tem trazido, mas é pena que poucas pessoas dentro desse mundo tenham compreendido que a inteligência artificial tal como é compreendida é uma pálida ideia daquilo que é a inteligência humana no seu real.

Ou seja, o humano, muito por via dos sentimentos, não pode ser replicado artificialmente.

De certeza que não pode ser nem simulado! Há uma grande diferença entre simulação e duplicação. O que a inteligência artificial faz, e muito bem, é uma simulação, e com capacidades extraordinárias, muito superiores àquelas que temos. A capacidade de inteligência no sentido mais directo e algorítmico que temos hoje em dia em matéria de memória, de estratégias de raciocínio é extraordinária. Faltam é essas outras qualidades que temos na nossa inteligência e que são absolutamente necessárias e extremamente realistas, porque têm a ver com aquilo que a vida é. Enquanto a vida concebida no sentido da inteligência artificial não tem nada a ver com aquilo que a vida é. A vida é outra coisa.

E o que é a vida?

É uma coisa venerável, confusa, efusiva. A grande arte dá-nos isso e a grande literatura dá isso extraordinariamente. Quando não se inclui essa componente de confusão, efusividade, aquilo que pode ser qualificável de bom ou de mau, perde-se uma grande parte do que é a vida. Por isso, e para acrescentar uma nota à sua pergunta anterior, os sentimentos como personagem são as representações, aquilo que está na nossa experiência mental quando estamos a viver uma vida real. E ao mesmo tempo uma forma de nos alertarem para aquilo que está a correr bem ou mal no sentido mais amplo do termo: a vida dentro de um organismo. Um organismo vivo, que tem bons momentos e maus momentos, que tem todas as variações e flutuações que vêm do seu metabolismo e que, porque tem mente e tem consciência – que é uma coisa que nós temos e as bactérias não – vai poder ter acesso a esse relato daquilo que está a correr bem ou mal.

No livro, fala da consciência da morte como definidor dessa humanidade, o sentimento de fim, que faz com que o homem encare a dor de outra maneira. A consciência da finitude é, desse modo, formadora não apenas de uma maneira de estar socialmente, como também criadora de uma linguagem. Como é que se transpõe esse saber da morte, muito vezes olhado como transcendência, para a ciência e muito concretamente para a biologia?

Tem sido difícil tratar essa questão. Uma das grandes barreiras é que a ciência, com a sua natural preocupação com a objectividade, teve enorme dificuldade em aceitar coisas que parecem extremamente subjectivas e confusas, com muitas variações, que é difícil de agarrar no sentido mais objectivo do termo. O facto de que os sentimentos são naturalmente subjectivos.

Isso tem sido matéria dos seus livros.

Sim, ando há 20 anos a explicar que sentimentos não são emoções. Mas é extraordinária a resistência. As coisas espantosas que dizem... falam de hearts and minds! Esperem um pouco: hearts and minds? O coração é a emoção, mas querem mesmo dizer coração? E querem mesmo dizer mente sem coração? As confusões são extraordinárias. Mas talvez o ponto mais importante é que as emoções são públicas. Quando está contente e se ri, ou quando está triste, quando está irritada tudo isso aparece na sua máscara. Aparece no rosto e no corpo. Quando se sente irritada ou triste ou alegre isso aparece unicamente em si. Você é a única pessoa que tem acesso a essa informação no sentido real. É uma experiência privada. Você pode simular a representação pública, mas essa distinção explica em grande parte porque é que as pessoas estão muito mais confortáveis quando falam de emoção: porque é público, porque é observável, enquanto os sentimentos têm de ser observáveis por dentro. Mas não estão de forma alguma fora do campo da ciência. É possível a cada um de nós fazer as observações, fazer o resumo dessas observações que é um campo científico e filosófico a que se chama fenomenologia. Portanto, temos a possibilidade de fazer as nossas próprias observações, partilhá-las com os outros, fazer comparações e fazer descrições o mais completas possível. Não há qualquer limitação do ponto de vista científico. Não há limitação da objectividade com que se pode estudar a subjectividade. E é isso que as pessoas não compreendem.

Sintetizando, fala de sentimentos e consciência, de emoções, de sensações.

Três coisas diferentes. Sensação é o que permite detectar a presença de um estímulo – e que as bactérias e as plantas também têm – e que gera uma resposta. Depois há certas respostas mais complexas. Em organismos simples, se tocar na criatura ela retrai-se. É a mesma reacção que terá se alguém a assustar, uma reacção emocional. Há reacções conservadas ao longo de biliões de anos e que são emocionais, reacções de movimento. O centro da palavra emotion é motion. Se alguém lhe perguntar a diferença entre emoção e sentimento agarre-se à palavra motion; o movimento está do lado das emoções e se está do lado das emoções está-se do lado daquilo que é visível para os outros. Sensação, no seu básico, não tem nada a ver com a emoção propriamente dita. A emoção é uma reposta complexa de movimento em relação a um estímulo que foi sentido e depois há o sentimento, que é a experiência mental daquilo que se passou no organismo quando houve sensação e emoção. São três graus. Um é extremamente simples, outro já é mais complexo, em que há uma resposta, e ainda um outro em que há o apreender consciente e mental daquilo que foi a resposta e que se passou no organismo. São mundos diferentes.

Podemos dizer que estamos no campo da subjectividade. É isso que o estimula do ponto de vista científico?

Sim, é extremamente importante. O que eu quero é dar objectividade científica àquilo que é uma coisa subjectiva, que é no fundo a definição da consciência. Grande parte do problema da consciência é o problema da subjectividade. É por isso, aliás, que é tão extraordinariamente difícil de perceber; é por isso que as pessoas têm enormes conflitos e desacordos sobre o que é a consciência. Cada vez mais estou absolutamente convencido que não é possível distinguir tecnicamente sentimento e consciência. O sentimento, muito possivelmente, foi o princípio da consciência do ponto de vista evolutivo. O sentimento com a sua natural subjectividade e tudo isso se estendeu a outras subjectividades: subjectividade do que está no exterior – eu tenho subjectividade em relação a si neste momento, mas também tenho subjectividade em relação ao meu interior. Por exemplo, sei neste momento que estou um bocado cansado, fiz uma viagem de 15 horas e estou fora da hora em que deveria estar. Tenho essa subjectividade. E tenho a subjectividade em relação a si, às paredes desta sala, ao que estou a ouvir atrás de mim. O que temos é uma grande possibilidade, muito rica, de juntar subjectividades dentro da nossa mente. A nossa mente é toda feita de subjectividades.

Esse é também o campo da arte.

Sim. E eu sou um apaixonado da literatura. A literatura é o modo mais rico, de todos os que temos, de entrar dentro da subjectividade de outra pessoa e de nos fazer perceber o que pode ser a outra pessoa, muito mais do que o cinema, do que o teatro, porque a situação em que estamos a ler é... devemos estar sozinhos e com um texto que podemos parar a qualquer altura. Pode ler um parágrafo e parar e pensar e retomar e reler. Não pode fazer isso com um filme a não ser que estrague tudo. Tecnicamente pode, mas ninguém vê um filme dessa maneira. A parte da experiência de ver um filme é vê-lo na continuidade de um determinado período de tempo.

Como cientista, a literatura pode ser-lhe útil – pese a ambiguidade da palavra – neste estudo?

Absolutamente. Tudo é útil, umas coisas mais do que outras, mas a literatura é extraordinariamente útil porque é uma entrada muito rica na mente, uma entrada que utiliza a vida subjectiva, os sentimentos. É muito curioso, quando se olha para as humanidades de uma forma geral, e para as artes vê-se como têm sido laboratórios de estudos. As pessoas não se aperceberam ainda de que uma boa parte do que se passa no mundo da grande arte é uma espécie de prefácio para o estudo científico dos seres humanos. Quando não havia uma estrutura laboratorial científica, as pessoas já estavam a...

Elaborar?

A elaborar. E a literatura tem sido um grande contributo. Quando me perguntam qual é o maior cientista de sempre respondo: na minha área, é Shakespeare.

Está lá tudo?

Praticamente tudo. Pelo menos esboçado. O que se tem é de desenvolver. Quer sejam as peças históricas, as tragédias ou as comédias, a própria poesia. Praticamente tudo aquilo que interessa, todos os grandes temas, estão lá. Entre as milhares de coisas que gostaria de escrever – se calhar não terei tempo –, seria fazer qualquer coisa com a neurociência ou a neurobiologia cognitiva vistas através do Hamlet e do Otelo. O Hamlet é praticamente suficiente. É tão rico e está tão cheio daquilo que conta... E talvez meter o Falstaff pelo meio para ficar mais completo.[risos]

Um dos capítulos do livro é sobre a crise do actual, “a actual condição humana”. Escreve: “Considerar os nossos dias como sendo os melhores de sempre seria preciso que estivéssemos muito distraídos”. Esta “crise” também é causa de uma certa resistência de parte de muitos cientistas em incluir as humanidades nas suas investigações?

A resposta é que há essa resistência, mas não da parte de todos. Há também quem adopte, quem veja o valor, o interesse, muitas vezes talvez porque na sua própria vida pessoal percebem que é importante e acabam por ser seduzidos por essas possibilidades. Se as pessoas trabalham em áreas muito microscópicas daquilo que é a ciência, mesmo que seja ciência humana, é mais difícil fazer a passagem directa. E não é uma coisa que se deva sequer criticar. É perfeitamente compreensível. Mas certas pessoas da minha geração, e até de algumas gerações a seguir, têm um enorme apreço pelas humanidades dentro da ciência. Não se devem fazer generalizações, mas é verdade que tem havido uma certa resistência e também alguma resistência militante. Em certas áreas, quando pessoas das humanidades olham para o contributo da teoria da evolução ou da genética... há tantos erros, tanta complicação, por exemplo a forma como parte desses conhecimentos levou a teorias sobre os seres humanos, da eugenia até aos extremos piores da exploração racista. Claro que há razões para as pessoas terem tido durante algum tempo uma certa rejeição e depois muitas vezes também têm o pavor do reducionismo. É um grande pavor também da parte das humanidades e, portanto, rejeitam que a ciência possa trazer alguma coisa de tão importante como aquilo que as humanidades têm trazido em matéria de compreender o que são os seres humanos.

Neste livro levanta duas ou três vezes esse problema...

Porque eu não tenho qualquer espécie de desejo de reduzir aquilo que são os seres humanos no seu mais sublime à ciência abstracta. Pelo contrário. Aquilo que acho, e cada vez acho mais e neste livro é a primeira vez que me apercebo, é isto: quando se ligam sentimentos à cultura, por um lado, e sentimentos à homeostasia e aos princípios da vida, o que estamos a fazer é a enriquecer a ligação entre a cultura e a vida. Ao contrário de reduzir, estamos a aumentar, a fazer com que esse fio seja mais visível.

A palavra homeostasia cruza todo o livro. Ela é completamente definidora do que é o humano?

É completamente definidora do que é um ser vivo.O ser humano precisa de ter não só os imperativos da homeostasia nos seus aspectos mais complexos, mas também desenvolvimentos que vêm com a multicelularidade, o aparecimento dos sistemas nervosos e depois o extraordinário desenvolvimento da capacidade dos sentimentos, consciência de mente com imagens...

Sobre a capacidade de criar imagens, escreve que “todas as imagens do mundo exterior são processadas de forma paralela às reações afectivas... ", e depois apela a um exercício: “pensemos na maravilha alcançada pelo nosso cérebro ao lidar com imagens de tantas variedades sensoriais, de origem externa e interna, ao ser capaz de as transformar nos filmes da nossa mente. Em comparação, a montagem de um filme é uma simples brincadeira.”

Exacto. Mas faço essencialmente uma abordagem crítica. Quando no início de tudo me falou da genealogia deste livro, há vários temas que venho a tratar há muitos anos, mas que agora me parecem, alguns, perfeitamente claros, e em que também tenho a coragem de dizer exactamente aquilo que penso sem estar com rodeios por poder ofender alguém que achasse que era pateta e novo de mais para estar a dizer coisas. Agora já posso dizer tudo o que me apetece.

Pode-se dizer que os sentimentos são fundadores da ciência?

Possivelmente são. São pelo menos motivadores. Neste livro há três papéis que dou aos sentimentos, ou ao afecto em geral. Primeiro, motivadores, depois monitores e depois negociadores. Os sentimentos intervêm nesses três pontos. São coisas diferentes. Uma é motivar, outra é a monitorização e a outra é a negociação de quando as coisas correm mal ou bem de mais. Há constantemente ajustes. Há pessoas que perante dois advogados a discutirem um contrato ou dois políticos a discutirem um tratado são capazes de pensar que isso está a acontecer num plano puramente intelectual; não está. Acontece num plano intelectual e acontece com toda a miríade de alterações que têm a ver com a forma como uma das pessoas apresenta o argumento e como a outra o recebe. Tudo isso é uma negociação que está a ser feita não só num plano de conhecimento e razão, coisas que se podem dizer objectivas e frias, mas também nesse outro plano que tem a ver com a forma como a negociação está a correr do ponto de vista afectivo. Essa é a realidade. Tem o exemplo espectacular do que se tem estado a passar nestes últimos dois anos com movimentos de populismo, de racismo em toda a parte. Muitas vezes, a forma como esses problemas são apresentados gera reacções de zanga e protesto puramente emocionais. Uma das coisas extraordinariamente curiosas é que quando as pessoas falam de emoções falam quase sempre do ponto de vista negativo das emoções. Muitas vezes acham que há o lado objectivo, o do bom raciocínio, e depois as emoções, más, que tornam as coisas irracionais. É um disparate completo, porque é limitar o âmbito das emoções ao negativo. Há emoções muito positivas; ter compaixão, gratidão, desejo de ajudar, cooperar. O amor! o desejo pelo amante, o amor pela criança que se está a criar.

É desse preconceito que vem a distinção entre inteligência e inteligência emocional?

Sim. As emoções muitas vezes ajudam a tomar a decisão e muitas vezes trazem o conhecimento, o discernimento, o destilar de uma série de conhecimentos que temos, uma vez que foram aplicados e qualificados. A intuição é uma maneira de fazer linha recta para a solução do problema sem andar por todas as fases intermédias. Essa intuição vem de uma forma emocional. Tudo isto tem imensa graça. As pessoas que descobriram o big data falam de como um grupo de computadores pode ler uma enorme quantidade de dados e tirar uma conclusão extremamente nova, verificando que aquilo é o que se deve fazer. Mas isso que o computador está a fazer é aquilo que a intuição humana faz há milhões de anos. O nosso cérebro é um big data system que tem imenso conhecimento do que é a nossa vida interior fisiológica e sobre o que é, e tem sido, a nossa vida em geral. E esse big data system está constantemente a dar-nos um dado institucional que é extremamente importante para a nossa vida. Tudo isso vem do lado das emoções e faz parte do que se poderia chamar inteligência emocional. Não uso o nome porque não acho que haja uma inteligência emocional e uma não emocional. Há inteligência.

Começa o capítulo dedicado à crise actual dizendo que nunca tivemos tanta informação nem tanta possibilidade de sermos felizes, mas... E critica os media públicos e o seu modelo lucrativo de negócio, reduzindo a qualidade de informação; questiona o valor de entretenimento aplicado à história jornalística e afirma: "Embora a literacia científica e técnica nunca tenha estado tão desenvolvida, o público dedica muito pouco tempo à leitura de romances ou de poesia, que continuam a ser a forma mais garantida e recompensadora de penetrar na comédia e no drama da existência, e de ter oportunidade de reflectir sobre aquilo que somos ou podemos vir a ser. Ao que parece não há tempo a perder com a questão pouco lucrativa de, pura e simplesmente, ser.” Que cultura é esta que parece rejeitar a criação de pensamento e se fica pela emoção?

Historicamente, quando se vê o que tem sido a marcha dos seres vivos, há coisas que são previsíveis e outras que não são. E depois há certas coisas que acontecem, em que as pessoas não apreendem nem prevêem as consequências. O que se está a passar, por exemplo com a Internet e as redes sociais, é uma entrada extremamente larga dentro das mentes. É uma coisa que entra dentro de nós e que tem o poder de modificar a forma como pensamos e nos comportamos.

A sociabilização.

Exacto. Há uma entrada dentro do que somos do ponto de vista mental a um nível completamente diferente de outras tecnologias. Não é tão somente um telefone. É o telefone e a possibilidade de entrar num mundo de conhecimento de forma imediata. Ter essa informação toda é extraordinário mas o que temos de pensar é o que acontece com as pessoas que só têm vivido com isso e não tiveram a possibilidade de se desenvolver com mais distância em relação ao que se está a passar nessa rapidez de tecnologia. Há também o problema do que vai acontecer quando as pessoas ficarem sem tempo para reflectir sobre o que estão a viver. Vão ter a possibilidade de ter tudo muito rapidamente, a quantidade de informação é enorme e a maneira de resolver os conflitos tem de ser diferente. E vai ser mais complicada porque não há tempo para o discernimento. É possível fazer o contra-argumento: é o problema que temos por sermos de uma geração anterior e não termos crescido com isso, e os cérebros das pessoas que já cresceram com isso estão adaptados. Isso é verdade em parte, mas não quer dizer que essas novas pessoas que cresceram dessa maneira não tenham ao mesmo tempo reduzido a sua possibilidade de olhar para o mundo de uma forma mais calma e mais completa e reflectida. É um problema em aberto, que tem de ser estudado, e não o tem sido porque tudo está a acontecer agora.

Usa as expressões “bancarrota espiritual” e “bancarrota moral” para classificar o que está a acontecer. 

E poderia juntar aqui a trigger warning, que está ligada a tudo isso. Por exemplo, numa aula pode haver uma discussão sobre violência ou sobre sexo e um aluno levanta a mão a dizer trigger warning, i dont feel safe anymore. É uma concepção da vida como se a pessoa pudesse viver protegida de tudo o que não é conveniente e, ao mesmo tempo, ficar sem a possibilidade de perceber o que se está a passar e de se defender inteligentemente. O presidente actual da Universidade de Chicago tem escrito sobre isso e diz que eles rejeitam isso ao abrigo do trigger warning e isso é uma remoção da educação e nós, como universidade, não vamos deixar que os nossos estudantes sejam amputados e fiquem sem a possibilidade de responder inteligentemente às ameaças. Tudo isto são problemas para serem estudados. É relativamente fácil olhar para a situação e reconhecer que o progresso é extraordinário, as possibilidades são magníficas e ao mesmo tempo também temos de reconhecer que precisam de ser estudadas para ver se podem correr melhor. As razões pelas quais as coisas não correm bem serão imensas mas há possibilidades. A questão que referia há pouco, do ser, é tão importante e parte do pressuposto de se conseguir estar consigo próprio e observar a maravilha da existência sem preocupações com aquilo que vem antes ou depois. É uma capacidade unicamente humana.

Estamos há muito tempo a conversar e pergunto-lhe o que é que isto tudo tem a ver com biologia?

Há biologia em variadíssimas áreas. A biologia no que diz respeito à nossa violência ancestral. Somos primatas, a nossa herança é a de animais... e trazemos a autodestruição connosco. Falo de Freud e da ideia de auto-destruição. Ele chama a atenção para uma coisa que é muito real e que as pessoas muitas vezes querem esquecer: a ideia de que somos capazes de violência. E há uma ideia que é consequente a essa e tem a ver com a educação, com o facto de que a única maneira de resolver o problema da nossa violência natural e de como naturalmente as pessoas querem estar com aqueles que são parecidos e não com os diferentes. Tem de haver um plano de educação extraordinário, uma espécie de super-plano de investimento global que não tem sido feito por razões que são também históricas e sociopolíticas.
O mundo é dividido, depois há uma crise económica, uma crise política que leva a migrações, essas migrações trazem dificuldades e há reacções contra e não há possibilidade de coordenar globalmente um plano educacional. Para mim não é uma ideia mítica, acho possível. Não é possível só com as Nações Unidas. Tem sido possível em certos períodos. Os Estados Unidos, com todos os seus problemas, tiveram uma acção extraordinária no pós-guerra. Há um período que não é de paz completa, em que houve um investimento em reconstruir países e permitir que houvesse um alargamento da educação e da maneira de compreender outros que são diferentes. É uma grande projecto que, em parte, funcionou, tem funcionado, mas que neste momento está a ser ameaçado.

Já viveu no Iowa, em Chicago, agora vive em Los Angeles. Da sua experiência pessoal, as diferenças acentuaram-se entre esses três mundos geográficos. Há um país muito dividido. Um centro que se sente esquecido e as margens liberais.

Há muitas semelhanças com as experiências europeias. Nos EUA é uma coisa mais orgânica. Sempre tiveram enormes divisões geográficas. Há uma narrativa histórica que conseguiu compensar e impor um bom funcionamento em conjunto à volta de certos mitos e neste momento há uma fragilidade das relações, há fenómenos económicos extraordinariamente importantes e há uma evolução de tempos diferentes em diversas comunidades. Mas veja a Europa, encontra exactamente os mesmos problemas – que na Europa são muito velhos e um pouco esquecidos. Isso está dentro do que são os seres humanos; os seres humanos a criarem um grupo, uma história com determinados hábitos, determinadas preferências e a forma como aceitam, ou não, que isso possa ser suplantando.

Isabel Lucas (Texto) e Rui Gaudêncio (Fotografia) in Público

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Informações-Prova para o Ano Letivo 2017/2018

Fonte: PortalMath


Estão já disponíveis e completas as Informações -Prova relativas às Provas de Aferição, Provas Finais (3º Ciclo do Ensino Básico) e Exames Finais do Ensino Secundário:

Provas de Aferição


2.º ano [pdf]
5.º ano [pdf]
8.º ano [pdf]

Provas Finais - 3.º Ciclo do Ensino Básico

Matemática 92 [pdf]
Português 91 [pdf]
Português Língua Não Materna (A2) 93 [pdf]
Português Língua Não Materna (B1) 94 [pdf]
Português Língua Segunda 95 [pdf]

Exames Finais Nacionais do Ensino Secundário

Alemão 501 [pdf]
Biologia e Geologia 702 [pdf]
Desenho A 706 [pdf]
Economia A 712 [pdf]
Espanhol 547 [pdf]
Filosofia 714 [pdf]
Física e Química A 715 [pdf]
Francês 517 [pdf]
Geografia A 719 [pdf]
Geometria Descritiva A 708 [pdf]
História A 623 [pdf]
História B 723 [pdf]
História da Cultura e das Artes 724 [pdf]
Inglês 550 [pdf]
Latim A 732 [pdf]
Literatura Portuguesa 734 [pdf]
Matemática Aplicada às Ciências Sociais 835 [pdf]
Matemática A 635 [pdf]
Matemática B 735 [pdf]
Português 639 [pdf]
Português Língua Segunda 138 [pdf]

Português Língua Não Materna (B1) 839 [pdf]


Fonte: IAVE

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