Da cama à cozinha são uns passos, os suficientes para chegar ao balcão e encher um copo com água. Só com metade do caudal já bebido se desvenda a primeira falha: ao fundo do copo lê-se “Made in Bulgaria”, sinal da expansão de uma gigante multinacional de produtos domésticos. Nem um minuto tinha passado e já se infringia a linha traçada para o último sábado – ficar longe de tudo o que não fosse português ou produzido em Portugal.
Na cozinha, o objectivo definido tornou óbvios os primeiros desafios. Mais que o espaço de confecção, a cozinha é um reflexo do mesmo desequilíbrio que os euros causam na balança comercial portuguesa – houve mais dinheiro gasto a comprar produtos fabricados lá fora do que nos produzidos cá dentro. Entre Janeiro e Novembro de 2011, os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) mostram uma diferença (ou um défice, se preferir) de 9 mil milhões de euros entre exportações e importações. E isto reflecte-se no pequeno-almoço, quando o pão teve de fugir à torradeira alemã e à manteiga francesa, e o leite foi bebido sem o frio do frigorífico norte-americano ou o quente que lhe daria o microondas sul-coreano. A regra imposta riscou quase tudo o resto: fogão, forno, máquina de café ou máquina de lavar roupa. O selo estrangeiro era comum a todos, e só um nome os tornaria utilizáveis: Meireles, a única marca portuguesa fabricante de electrodomésticos.
O próximo destino é a casa de banho, onde a tarefa se complicou. A toalha e o gel de banho eram de fabrico português, mas com pouco mais se pôde contar: o champô veio do Reino Unido, e holandesas eram a pasta e a escova de dentes. A barba ficou como estava, pois a máquina de barbear era norte-americana, e em prol da higiene quebrou-se a regra com o desodorizante, de etiqueta francesa.
Foi precisamente para etiquetas e códigos de barra que surgiu o apelo de uma iniciativa germinada em conversas de café. No Verão de 2005 surgia o Movimento 560, cujo apelido de três números, ao contrário do que muitos pensam, nem sempre é sinónimo e garantia de produção nacional. “A dúvida principal é sempre saber se o 560 [primeiro trio de número no código de barras] significa que o produto é nacional, ao que tentamos sempre que possível responder que é apenas um passo”, esclareceu ao i um deles, ao lembrar a necessidade de “verificar sempre a origem”. Apesar de hoje contar com mais de 11 mil fãs na sua página de Facebook, Pedro Cavaco considerou o consumo e o apoio de marcas portuguesas “algo que devia ser intrínseco”, pois, se assim fosse, “talvez não tivéssemos de atravessar problemas tão grandes como os actuais”. “Mais do que um dever, o incentivo ao que se faz por cá é uma necessidade”, acrescentou o co-fundador da iniciativa, que deu o mote a outras, hoje mais mediáticas.
A Compro o Que É Nosso, criada em Outubro de 2006 pela Associação Empresarial de Portugal, colocou um “P” com as cores nacionais nos produtos portugueses das mais de mil empresas aderentes. Ou a Portugal Sou Eu, lançada pelo governo em Dezembro, que se propôs “aumentar a produção nacional” e “criar condições para aumentar o número de empresas com potencial para exportar”. Na altura do seu lançamento, Carlos Oliveira, secretário do Estado do Empreendedorismo, Competitividade e Inovação, explicou que, “se num cabaz de compras de 100 euros de produtos importados passarem a ser comprados cinco euros de produtos” com a etiqueta da iniciativa, o impacto será de “pelo menos 700 milhões de euros anuais”.
Após o banho, a consulta ao armário é mais demorada que o habitual. As preferências estéticas são trocadas por um único critério: a busca de roupa fabricada em Portugal. A procura acaba com uma T-shirt outrora esquecida e uma velha camisola de lã, resgatada de uma loja de comércio local. Mas não foi imaculada: um par de ténis vindos do Vietname e umas calças de fabrico turco mancharam o registo. A visita matinal à cozinha resultara numa outra necessidade – a de visitar o mercado da zona em busca de almoço, face à interdição do fogão e do frigorífico. A caminho do mercado, e sem telemóvel ou relógio (de fabrico chinês), fico a saber que o dia já vai a meio pelas 12 badaladas que o sino da igreja faz ecoar nas ruas. Chegado ao destino, paro na banca de Aurora de Brito, comerciante com 60 dos seus 73 anos feitos no Mercado de Campo de Ourique. Lembra com saudade os tempos em que “as pessoas se atropelavam umas às outras” nos corredores, antes de falar com orgulho da sua banca, onde só as uvas – fora de época – destoam de uma variedade de frutas alimentadas durante todo o ano por alguns pomares situados perto de Alcobaça. Fala dos jovens, que acusa de “preguiça” e de “não saberem cozinhar”, uma de muitas queixas contra a tendência de migração de clientes para os supermercados. Num deles, a menos de 500 metros, as maçãs, espanholas e francesas, ou os alperces sul- -africanos vincam os sinais de importação na bancada reservada aos frutos e vegetais, que tinha tanto de português como de estrangeiro. Cabe às pessoas optarem. Uma opção cuja importância foi resumida por Pedro Cavaco: “Vivemos em sociedade e temos de compreender que existem preocupações e problemas que nos são comuns, e que a solução parte de um conjunto de atitudes que têm de ser partilhadas.”
O resto do dia é preenchido em casa, sem computador, internet, ou até luz artificial – candeeiros há vários, mas em todos havia lâmpadas de marca e produção estrangeira. O regresso ao passado fez- -se à luz de velas, que à falta de televisão e rádio (ambos japoneses) foram iluminando a leitura de jornais até ao jantar. A última refeição do dia faz-se fora, num restaurante perto de casa, confiando numa combinação apalavrada no dia anterior, sem direito a confirmação por telefone. A companhia aparece e a garantia é dada por quem serve: os produtos confeccionados vinham quase todos do mercado ali perto. À falta de carro ou táxi com prova de fabrico português, o regresso a casa foi pronto. Uma noite de sono depois, acordava num mundo que já não era exclusivamente português. Mas tinha regressado ao século xxi
Na cozinha, o objectivo definido tornou óbvios os primeiros desafios. Mais que o espaço de confecção, a cozinha é um reflexo do mesmo desequilíbrio que os euros causam na balança comercial portuguesa – houve mais dinheiro gasto a comprar produtos fabricados lá fora do que nos produzidos cá dentro. Entre Janeiro e Novembro de 2011, os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) mostram uma diferença (ou um défice, se preferir) de 9 mil milhões de euros entre exportações e importações. E isto reflecte-se no pequeno-almoço, quando o pão teve de fugir à torradeira alemã e à manteiga francesa, e o leite foi bebido sem o frio do frigorífico norte-americano ou o quente que lhe daria o microondas sul-coreano. A regra imposta riscou quase tudo o resto: fogão, forno, máquina de café ou máquina de lavar roupa. O selo estrangeiro era comum a todos, e só um nome os tornaria utilizáveis: Meireles, a única marca portuguesa fabricante de electrodomésticos.
O próximo destino é a casa de banho, onde a tarefa se complicou. A toalha e o gel de banho eram de fabrico português, mas com pouco mais se pôde contar: o champô veio do Reino Unido, e holandesas eram a pasta e a escova de dentes. A barba ficou como estava, pois a máquina de barbear era norte-americana, e em prol da higiene quebrou-se a regra com o desodorizante, de etiqueta francesa.
Foi precisamente para etiquetas e códigos de barra que surgiu o apelo de uma iniciativa germinada em conversas de café. No Verão de 2005 surgia o Movimento 560, cujo apelido de três números, ao contrário do que muitos pensam, nem sempre é sinónimo e garantia de produção nacional. “A dúvida principal é sempre saber se o 560 [primeiro trio de número no código de barras] significa que o produto é nacional, ao que tentamos sempre que possível responder que é apenas um passo”, esclareceu ao i um deles, ao lembrar a necessidade de “verificar sempre a origem”. Apesar de hoje contar com mais de 11 mil fãs na sua página de Facebook, Pedro Cavaco considerou o consumo e o apoio de marcas portuguesas “algo que devia ser intrínseco”, pois, se assim fosse, “talvez não tivéssemos de atravessar problemas tão grandes como os actuais”. “Mais do que um dever, o incentivo ao que se faz por cá é uma necessidade”, acrescentou o co-fundador da iniciativa, que deu o mote a outras, hoje mais mediáticas.
A Compro o Que É Nosso, criada em Outubro de 2006 pela Associação Empresarial de Portugal, colocou um “P” com as cores nacionais nos produtos portugueses das mais de mil empresas aderentes. Ou a Portugal Sou Eu, lançada pelo governo em Dezembro, que se propôs “aumentar a produção nacional” e “criar condições para aumentar o número de empresas com potencial para exportar”. Na altura do seu lançamento, Carlos Oliveira, secretário do Estado do Empreendedorismo, Competitividade e Inovação, explicou que, “se num cabaz de compras de 100 euros de produtos importados passarem a ser comprados cinco euros de produtos” com a etiqueta da iniciativa, o impacto será de “pelo menos 700 milhões de euros anuais”.
Após o banho, a consulta ao armário é mais demorada que o habitual. As preferências estéticas são trocadas por um único critério: a busca de roupa fabricada em Portugal. A procura acaba com uma T-shirt outrora esquecida e uma velha camisola de lã, resgatada de uma loja de comércio local. Mas não foi imaculada: um par de ténis vindos do Vietname e umas calças de fabrico turco mancharam o registo. A visita matinal à cozinha resultara numa outra necessidade – a de visitar o mercado da zona em busca de almoço, face à interdição do fogão e do frigorífico. A caminho do mercado, e sem telemóvel ou relógio (de fabrico chinês), fico a saber que o dia já vai a meio pelas 12 badaladas que o sino da igreja faz ecoar nas ruas. Chegado ao destino, paro na banca de Aurora de Brito, comerciante com 60 dos seus 73 anos feitos no Mercado de Campo de Ourique. Lembra com saudade os tempos em que “as pessoas se atropelavam umas às outras” nos corredores, antes de falar com orgulho da sua banca, onde só as uvas – fora de época – destoam de uma variedade de frutas alimentadas durante todo o ano por alguns pomares situados perto de Alcobaça. Fala dos jovens, que acusa de “preguiça” e de “não saberem cozinhar”, uma de muitas queixas contra a tendência de migração de clientes para os supermercados. Num deles, a menos de 500 metros, as maçãs, espanholas e francesas, ou os alperces sul- -africanos vincam os sinais de importação na bancada reservada aos frutos e vegetais, que tinha tanto de português como de estrangeiro. Cabe às pessoas optarem. Uma opção cuja importância foi resumida por Pedro Cavaco: “Vivemos em sociedade e temos de compreender que existem preocupações e problemas que nos são comuns, e que a solução parte de um conjunto de atitudes que têm de ser partilhadas.”
O resto do dia é preenchido em casa, sem computador, internet, ou até luz artificial – candeeiros há vários, mas em todos havia lâmpadas de marca e produção estrangeira. O regresso ao passado fez- -se à luz de velas, que à falta de televisão e rádio (ambos japoneses) foram iluminando a leitura de jornais até ao jantar. A última refeição do dia faz-se fora, num restaurante perto de casa, confiando numa combinação apalavrada no dia anterior, sem direito a confirmação por telefone. A companhia aparece e a garantia é dada por quem serve: os produtos confeccionados vinham quase todos do mercado ali perto. À falta de carro ou táxi com prova de fabrico português, o regresso a casa foi pronto. Uma noite de sono depois, acordava num mundo que já não era exclusivamente português. Mas tinha regressado ao século xxi
Fonte: iOnline
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