quinta-feira, 28 de setembro de 2017

"Quem defende que as crianças têm de trabalhar mais, depois de um dia inteiro na escola, esqueceu-se do que é ser criança"


Saltou para a ribalta ao ser considerado um dos 50 melhores do mundo pelo Global Teacher Prize, uma espécie de prémio Nobel da Educação. Aos 45 anos, o espanhol Cesar Bona quer avisar o mundo que ser professor é um privilégio. Afinal, se uma pessoa tiver paixão pelo que faz, mais facilmente imprime esse gosto nos outros.

Em Portugal para promover o seu mais recente livro A Nova Educação, este maestro, que em castelhano designa o professor dos primeiros anos de escolaridade, assume que, além de ensinar, a escola também existe para educar os adultos de amanhã, para os estimular a querer viver num mundo melhor.

"O importante é promover a cooperação, educar por empatia", salienta. Oriundo de uma pequena aldeia perto de Zaragoza, filho de um carpinteiro e de uma dona de casa, o professor que sabe de onde vem, e para onde vai, diz que foi o destino que o pôs neste papel: "Quando era mais novo queria ser futebolista."

Porque diz que ser professor é um privilégio?

Todos os dias são um desafio e também uma grande responsabilidade. É um privilégio porque podemos convidar as crianças a olhar para o mundo à sua volta e a tentar melhorá-lo. Para mim, ser professor não é só abrir um recipiente e enchê-lo de conhecimento. É a possibilidade de estimular a ser melhor e a querer mudar o que o rodeia. É também uma grande responsabilidade porque essa marca fica para sempre sobretudo quando se é o professor referência, o primeiro contacto com a escola e a aprendizagem. E se aqueles alunos se vão lembrar de mim para toda a vida, quero que seja uma lembrança positiva.

É o mesmo lema do Homem-Aranha: "Com um grande poder vem uma grande responsabilidade."

É por aí, exatamente. O professor tem esse poder imenso nas mãos: imprimir a melhor mensagem possível em milhares de crianças que lhe passam pela frente.

O que valoriza mais na sala de aula: que aprendam, que fiquem curiosos e queiram saber mais, que sejam pessoas bem formadas?


Há de facto muita coisa que hoje recai sobre a escola. Mas o desafio é esse: ensinar-lhes o que precisam, estimular-lhes a curiosidade para gostarem de aprender e irem à procura de mais conhecimentos, e ainda formar boas pessoas, gente que trate bem os outros, que respeite o meio ambiente, que tenha responsabilidade social.

Ter paixão pelo que faz é meio caminho andado?

Paixão e esperança. Se convives com quem está cheio de esperança na sua essência, porque as crianças são os adultos de amanhã, são ambas imprescindíveis. À mistura com a curiosidade e a criatividade, as possibilidades que se apresentam a um professor para provocar alterações nas vidas dos seus alunos são imensas. Temos de ensinar muitas coisas, mas temos de ser um abre-portas, para que todos tirem a curiosidade da caixinha e a ponham ao seu serviço, para que seja o motor do seu dia a dia. Uma criança que gosta de aprender vai fazê-lo a vida toda. Estimulando a curiosidade das crianças, alimenta-se ainda a criatividade, muito importante para resolver problemas e encontrar caminhos novos quando já ninguém sabe o que fazer. Porque lhes permite ver as coisas de outra maneira.

Parece então que subestimamos constantemente as crianças...


Sim, em todos os sentidos. Eles têm imensas coisas que podem partilhar connosco e não valorizamos. A nível social, isso também acontece. Faz falta perguntar às crianças como mudavam um parque, que alterações gostariam de ver no bairro onde vivem, o que gostariam que acontecesse para melhorar a vida dos outros. Quando uma pessoa arrisca fazê-lo, os resultados são sempre surpreendentes.

Regra número um: nunca esquecer a criança que há em nós. É isso?

Nunca. Nas crianças está toda essa maleabilidade, esse olhar sem preconceito, sem ideias feitas. Isso permite compreendê-las melhor e ajudá-las no seu percurso. Ao colocarmo-nos ao seu nível, olhos nos olhos, tudo fica mais fácil.

No livro A Nova Educação, alinham-se ideias como "Não faço nada de extraordinário, apenas me divirto na sala de aula" ou ainda "Sou professor mas não sei tudo. Vocês também podem ensinar-me". Como é que se faz isso ?

Quando me divirto, desfruto. E isso é muito importante porque à minha frente estão pessoas que, durante toda a infância e adolescência, não podem mudar de vida, como um adulto faria. Estão ali e têm de ali estar, na escola, na sala de aula, diante do professor. Daí a grande responsabilidade: conseguir que tenham ganas de voltar no dia seguinte. Todos os dias, aqueles miúdos são obrigados a estar sentados durante seis horas, apenas a escutar e a repetir, e isso é aborrecido para qualquer um. Para um adulto também, não?

Imagino que o desafio seja maior por vivermos numa zona do globo mais envelhecida e onde as crianças são cada vez mais raras e crescem superprotegidas...
É importante não cair nesse equívoco: nem sempre tudo corre bem e é importante ensiná-las a lidar com a frustração. É assim que se estimula a resiliência na circunstância em que você é diferente de mim, e temos todos de aprender a respeitar essas diferenças.

Como se educa para a cooperação e não para a competitividade se vivemos num mundo cada vez mais competitivo?

Daí a sua premência. Porque uma das maravilhas da escola é que ela pode mudar a sociedade. Se acreditamos que é a chave para mudar o mundo, então temos de educar para a cooperação. A escola é o lugar ideal para promover o que queremos para o mundo em que vivemos.
Muitas famílias mudam os seus hábitos e a suas rotinas por força das aprendizagens que os filhos trazem da escola: alteram o que compram, passam a fazer reciclagem... Imagine--se isso replicado por milhares de casas, em todo o mundo. É um poder extraordinário à nossa disposição.

A crise perturba esse processo? A escassez torna-nos mais competitivos?

Depende. Temos vivido em crise nos últimos anos, mas isso não nos tornou menos sensíveis, por exemplo, à questão dos refugiados. As crianças, e as escolas, têm promovido os valores da solidariedade com quem tem menos insistindo que juntos somos todos mais fortes. Claro que tanto podemos instigar uma criança a ter uma nota melhor do que a do companheiro como podemos estimulá-la a ajudar o outro para os dois terem notas melhores. Depende do que queremos.

E os pais, preocupados com o sucesso do seu filho, não perturbam esse processo?

Às vezes penso que temos de nos reeducar todos. Claro que cada pai quer o melhor para o seu filho. Mas às vezes o melhor para um filho é dar um passo atrás para ajudar o colega do lado e depois seguirem os dois em frente. Melhoramos a sociedade sempre que ajudamos um companheiro. E é uma maneira maravilhosa de aprender: aquele que ajuda o outro sente-se depois tão bem, tão orgulhoso, que nunca mais esquece o que se tratou ali. É disso que se trata: somos seres sociais, não podemos continuar a ensinar como se fossemos indivíduos que vivem isolados.

Ainda ouvimos muitas vezes que a escola ensina, a casa é que educa. O que pensa sobre isto?

Temos de apagar isso do discurso da educação. A casa e a escola são parceiros num projeto educativo. Há um ditado africano que diz que é preciso toda uma aldeia para educar uma criança e a escola é o melhor lugar para ajudar os pais a educarem os seus filhos. A aula funciona como uma espécie de micro sociedade. Se queremos mudar a sociedade, então devemos promover também essas alterações na sala de aula.

Recentemente, cresceram as críticas a uma instituição que está igual ao que era há 150 anos. Porque é que a Escola resiste tanto à mudança?


É uma forma de nos sentirmos mais tranquilos. Queremos educar os nossos filhos como fomos educados, esquecendo todas as transformações que o mundo conheceu. Há ainda um outro fenómeno: aplaudimos os exemplos de fora, mas não aceitamos mudanças cá dentro: por exemplo, a escola finlandesa anunciou que acabou com as paredes e todos aplaudem. Se eu, aqui, quiser derrubar um muro que seja, já me acusam de estar a querer fazer uma revolução. As escolas estão organizadas como fábricas, como locais de trabalho. Penso que quem desenha escolas devia saber tanto de arquitetura como de crianças. O meu objetivo é que, ao fim do dia, quando vão para casa, todos reflitam sobre o que aprenderam e como vão utilizar essa aprendizagem.

E tem sempre autonomia para fazer isso?

Nem sempre e não é fácil. Mas os professores têm estado muito à defesa. Optam demasiadas vezes por fechar a porta da sala, proclamando que a aula é deles e portanto fazem como querem. Defendo o contrário: deixar a porta aberta. Prefiro sempre partilhar o que faço. É neste processo que descobrimos que não somos ilhas e não estamos sozinhos na difícil tarefa de educar os outros.

Polémicas de Portugal que se repetem em Espanha. Como vê a questão dos TPC?

Quem defende que as crianças têm de trabalhar mais, depois de um dia inteiro na escola, esqueceu-se do que é ser criança e como, quando era mais pequeno, gostava de aprender mas também de estar com a família e de brincar. Eu gostava de ir ao parque e ao rio. Hoje, há milhares de crianças a fazer deveres horas a fio, depois da escola, até à hora do jantar. E não têm culpa que os currículos escolares sejam tão compridos. Todos os dias, segunda, terça, quarta, quinta, sexta. Quem é que, depois disto, tem vontade voltar de ir para a escola no dia seguinte e aprender? Os TPC são uma prática ultrapassada.

Mas esteve contra a greve aos TPC, que os pais promoveram em Espanha?

Sim, porque uma greve implica estar contra alguma coisa. No caso, opõe pais a professores, e eu acredito que esse caminho deve fazer-se antes pelo diálogo. Devemos pensar como chegar a um acordo, tendo em conta que no centro está a criança e temos de pensar é no que é melhor para ela. Sabemos que a força dos TPC e da obsessão dos resultados escolares assenta também no impacto que têm na elaboração de rankings de escolas... Vemos o que está a acontecer com o PISA: Parece uma competição desportiva. Ah, Espanha ficou em quinto lugar, ah, Portugal está à frente. E o quê? O que quer isso dizer? Qual o impacto disso? E tem muita importância para quem? Para os governos. Sei que Portugal melhorou mas Espanha está na mesma, em 15 anos a avaliar as competências matemáticas, científicas e domínio da língua materna. Então e a respeitarnos uns aos outros? E a ter consciência ambiental? E ser tolerante com o diferente?

E é possível manter essa aposta numa educação diferente mesmo com as piores turmas?

Sobretudo bom, e não dividiria as turmas em piores ou melhores. Há turmas menos fáceis, geralmente constituídas por crianças que têm milhares de razões para estarem tão descontentes, tão revoltadas. Primeiro, temos de tentar saber o que passam, nas horas em que não estão ali, e temos de ver isso como um investimento. Para lhes ganhar a confiança, o respeito e depois arrancar a alta velocidade para as outras aprendizagens.

Soa a provocação...

E é, um bocadinho. Mas a verdade é que todos temos algo para oferecer. Se nos focarmos no mal, só vemos o mal. Se desviarmos a atenção para o bom, então esse valor vem ao de cima. Estimula a sua autoestima e isso pode fazer maravilhas no futuro.


Fonte: Visão

terça-feira, 26 de setembro de 2017

Educar não é moldar uma mente!

Como professores, pais, a nossa função vai muito além de transmitir certos conteúdos. Abrange o desafio de aceitar o outro (criança ou adolescente) como um ser individual e único que absorverá dentro de si mesmo, à sua maneira, o conteúdo que lhe foi transmitido.


Esta animação: “Cloudy Lesson”, “Como fazer nuvens”, mostra-nos, de modo lúdico e belo, o quanto as possibilidades e a realidade pode ser adequada, criativa e inteligente, quando se percebe que até mesmo para “fazer nuvens” poderemos fazê-lo de diversas formas.


Adaptado de Revista Pazes 


domingo, 24 de setembro de 2017

Boca do Inferno: Reductio Ad Portugalum

É possível que, no limite, Tancos não exista – e mesmo Portugal, por absurdo, pode ser um produto da nossa imaginação. Mas em princípio não é, porque ninguém conseguiria inventar isto.


É um quadro de Werner Buttner: tem um copo, uma escova de dentes, uma bisnaga de pasta dentífrica e uma espingarda. Por baixo, a legenda: “Cuida tus dientes como tus armas”. Se o ministro da Defesa segue o conselho do pintor, temo pelo seu hálito. Caso dedique aos dentes o mesmo cuidado que dedica às armas, Azeredo Lopes não sabe quantos dentes tem, onde estão, nem o estado de conservação em que se encontram. Há jornais espanhóis que sabem mais sobre os seus dentes do que ele próprio.

Numa recente entrevista, a propósito do furto das armas do paiol de Tancos, o ministro disse: 
“No limite, pode não ter havido furto nenhum. Como não temos prova visual nem testemunhal, nem confissão, por absurdo podemos admitir que o material já não existisse (…)”. Ora, quando a tropa permite que lhe roubem as armas, já estamos perante uma situação absurda. Tenho dúvidas de que ensaiar raciocínios que reduzem ao absurdo ocorrências absurdas seja filosoficamente possível. Gera-se uma concentração de absurdo que não pode fazer bem à saúde. O absurdo devia ser o sal da conversa: uma pitada de absurdo num argumento com pés e cabeça entretém e até ilumina; considerações absurdas sobre ocorrências absurdas são bastante menos proveitosas e costumam ser expendidas em sanatórios.

Sísifo empurra a pedra montanha acima; depois, a pedra volta a rolar para o sopé, e Sísifo começa tudo de novo. Isso, já foi assinalado, é absurdo. No entanto, se Sísifo se puser a conjecturar que, no limite, a pedra talvez não exista e que, por absurdo, a montanha pode nunca lá ter estado, a gente questiona a saúde mental de Sísifo. Uma coisa é executar repetidamente uma tarefa que se sabe ser desprovida de sentido; outra coisa é estar armado em parvo. Higino não falaria dele, e Homero arranjaria maneira de o expulsar da Odisseia.

Quando, em Julho, o Presidente da República visitou Tancos, disse: “Não podemos, em matéria de furto de material militar, ter furtos desta dimensão. Há que prevenir para que não volte a acontecer”, e acrescentou: “É preciso investigar se há alguma ligação entre este furto e furtos que têm acontecido nos últimos dois anos em países membros da NATO”. O ministro Azeredo Lopes, que o acompanhou, não disse (mas deveria ter dito) que não havia nada para prevenir, e que subsistiam dúvidas de que houvesse algo para investigar. É possível que, no limite, Tancos não exista – e mesmo Portugal, por absurdo, pode ser um produto da nossa imaginação. Mas em princípio não é, porque ninguém conseguiria inventar isto.

Fonte: Visão

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Crónicas (2) - António Lobo Antunes - Mãe

Levei-a à igreja, ela inclinou-se sobre o caixão e beijou-o na boca. Foi o único beijo deles na boca que eu vi, porque eram pessoas de um grande pudor.



A minha mãe achava que a coisa mais sensual num homem era a inteligência e a coisa menos sensual um rabo grande, embora acrescentasse não haver nada mais estúpido que um homem inteligente

(“Um homem bonito e burro ao fim de um quarto de hora não tem cara”)

e que os seus próprios filhos eram muito inteligentes para umas coisas e muito burros para outras, no que tinha, como aliás em quase tudo, razão. Acima da inteligência só colocava a bondade, que era uma das mais importantes características do seu pai, que ela adorava. A minha relação com ela foi sempre complicada. Mas quando tive o cancro

(um em cada pulmão)

veio visitar-me e enquanto o meu irmão Pedro me agarrava os ombros e me sacudia a chorar

– Não me morras, não me morras

(logo o Pedro que quase nunca chorava)

compreendi que, se pudesse, dava a vida por mim. Anos depois o Pedro morreu e nós, os filhos, fomos, os cinco

(o Pedro já não estava, claro)

dizer-lhe. Achava-se sentada na sua cadeira e respondeu com duas frases apenas. A primeira foi

– Tenham misericórdia de mim

e a segunda, passados momentos

– Uma mãe não tem o direito de estar viva com um filho morto

e por isso quis morrer e morreu, ela, a pessoa menos piegas que conheci. Anos antes o pai tinha partido. Passava o tempo fechado num quarto, com os seus livros, a sua música, a sua medicina, e quase só o víamos à hora das refeições. 
A casa era grande e sem o pai parecia vazia. Disse-lhe

– Esta casa sem o pai parece vazia

e ela respondeu-me

– É que ele tinha uma presença muito forte

O que era verdade. Levei-a à igreja, ela inclinou-se sobre o caixão e beijou-o na boca. Foi o único beijo deles na boca que eu vi, porque eram pessoas de um grande pudor. Depois endireitou-se e saímos. Ainda hoje tenho um enorme orgulho nesse beijo, ela que começou a namorá-lo com catorze anos, eles que viveram juntos mais de sessenta. Julgo que foram felizes

(nunca falaram disso connosco)

tiveram de certeza problemas complicados e fases difíceis, claro, mas continuaram sempre juntos. E o meu pai não era um homem simples: contraditório, violento, apaixonado. Teve a sorte de encontrar uma mulher do caraças, ainda por cima linda. Da cabeça aos pés, eu que nunca vi pés tão bonitos como os seus. Achava o marido atraentíssimo

(eu achava-o feio como o caneco)

e se calhar devia ser atraentíssimo porque via isso nos olhos das mulheres. E tinha a voz mais sedutora que conheci. Tão sedutora que às vezes lhe telefonava só para o ouvir dizer

– Filho

e era impossível ter-se frio ao pé dele. Claro que era muito consciente disso e irritavam-me as aulas de Neurologia na Faculdade com ele a conquistar as minhas colegas todas, jogando com toda a gama de graves da garganta e o olhinho azul a passear pela plateia enquanto eu sentia ganas de o estrangular. A mãe, pesarosa

– Nenhum dos filhos herdou a voz do pai

e era capaz de ter razão porque as netas lhe faziam todas fosquinhas apaixonadas. Às vezes penso no que ele sentiria por mim. Sei que me gabava diante dos outros mas a mim

(como aos meus irmãos)

não nos elogiava, suponho que por razões de autoridade. Sei que pensava, coitado, que eu tinha nascido para fazer grandes coisas, esse tipo de sentimentos que qualquer pai sente por qualquer filho. Como sei que tinha orgulho nos meus irmãos que tão pouco o ouvi elogiar e compreendo que assim fosse. Nunca houve efusões entre os nossos pais e nós e não lhes quero mal por isso. Tinham outras formas, sempre muito discretas, de o comunicarem, eu que sou desbocado e acho que tenho uns irmãos de penica. Mas disso também não falávamos, nós que vivíamos uns com outros, que continuamos a viver uns com os outros uma relação fortíssima. Tenho imenso orgulho nos meus irmãos

(devo estar parvo porque nunca digo isto)

e sinto-me imensamente afortunado com a minha família. A minha mãe costumava dizer

– Desafio qualquer mulher a ter filhos tão inteligentes e tão bonitos como os meus
e declarava isto com uma sinceridade absoluta. 
O amor de mãe é assim cego, mesmo numa pessoa tão extraordinariamente contida como ela foi sempre. 
O melhor é desculpá-la, fingindo que não ouvimos. 
Ou então dizer-lhe, como fiz tantas vezes

– Quer que lhe diga poemas?

para ela se levantar logo do seu lugar e vir sentar-se ao meu lado. Só nunca tive coragem de murmurar-lhe

– Mãezinha

como tantas vezes me apeteceu.


António Lobo Antunes in Visão

terça-feira, 19 de setembro de 2017

Pai, não conheço ninguém na escola nova! Tenho saudades dos meus amigos!

Quando uma criança experiencia mudanças na sua vida, desde uma mudança de casa a uma mudança de escola, e mesmo quando essas mudanças são muito desejadas, tal implica sair de uma zona de conforto e o afastamento da rede de suporte que seria o núcleo de amigos. Por esse motivo, as preocupações e os receios são naturais: “Quero voltar para a escola antiga. Tenho saudades dos meus amigos”. “Como vou fazer novos amigos? Com quem vou brincar se não conheço ninguém?”

Não desvalorize os receios do seu filho. O desafio pode ser mesmo grande, uma vez que ainda não tem as suas competências sociais e emocionais totalmente desenvolvidas. É importante que o ajude a gerir o novo desafio com sucesso e prevenir que passe por outras experiências difíceis, como isolar-se, ser excluído das brincadeiras, ser ridicularizado pelos pares, ou começar a ter vergonha e receio de realizar atividades na sala de aula nas quais sinta que está a ser observado e avaliado pelos colegas.

Muito importante:
  • Mostre-se disponível para ouvir o seu filho sem o julgar.
  • Explique ao seu filho que todos nós, perante mudanças, podemos sentir receio do novo contexto, alguma vergonha em relação a pessoas desconhecidas e questionar se seremos capazes de enfrentar as novas exigências.

Converse com o seu filho sobre alguns truques que o poderão ajudar a fazer novas amizades:
  • sorrir para os novos colegas e professores;
  • evitar ser o último a sair da sala;
  • observar os colegas que têm interesses e brincadeiras semelhantes, para que posteriormente se sinta mais confiante para se aproximar deles;
  • não ficar sozinho enquanto os outros brincam em grupo, aproximando-se dos colegas, mesmo que não tenha havido um convite formal para brincar;
  • não dar ouvidos a pensamentos negativos, como “não sou bom naquele jogo” ou “de certeza que eles não vão querer brincar comigo“;
  • respirar fundo, contar até 10 e pensar em algo positivo, quando se sentir mais ansioso.

Se o seu filho lhe tem dito: “Não conheço ninguém na escola nova. Tenho saudades dos meus amigos.”, então este livro é para vocês:


Inês Afonso Marques in ComRegras

domingo, 17 de setembro de 2017

Carta aos professores

Façam-nos pensar, despertem-lhes a curiosidade, incentivem-nos a partir à aventura. Ensinar é a arte da assistência à descoberta!



Caros amigos,

Não se importam que vos trate por amigos, certo? É que não vejo melhor palavra. Com quatro filhos em idade escolar, sinto que são uma espécie de companheiros de viagem. Escrevo-vos porque falar destes assuntos naquelas reuniões de pais é complicado – vocês sabem, é mais ou menos como nas reuniões de condóminos: muitos pais angustiados e impacientes e muitas perguntas idiotas sobre assuntos que não importam nada. 
O essencial parece que fica por dizer.

E há tanto para falarmos, caros professores, no arranque de mais um ano letivo, este marco definitivo nas rotinas de tantas famílias portuguesas como a minha. Espero encontrar-vos bem, carregados de energia para mais uma espécie de missão impossível – tenho a noção que é quase isso que se pede aos professores nos dias de hoje. Bem sei que muitos pais esperam que vocês façam todo o trabalho por eles: que ensinem, que eduquem, que sejam exemplos, que inspirem, que mantenham a serenidade em toda e qualquer situação, e que ainda por cima se contentem felizes com pouco como recompensa. Não é fácil corresponder a tanta expectativa, eu sei. Mas alguns de vós dão o vosso melhor e quase que chegam lá. Tiro-vos, honestamente, o chapéu.

Num ponto todos concordam – os professores moldam vidas e são eles o coração do sistema de ensino. Um bom professor guardamo-lo para a vida, marca para sempre. Mas não se deixem vergar pelo peso da responsabilidade. Não formalizem demasiado as relações. Tentem não perder a chama e a paixão dos primeiros dias, mantenham aquela boa dose de instinto na gestão de uma sala de aula. Usem e abusem do humor, sejam empáticos, sejam performers – era Steinbeck que dizia que um professor é um grande artista. A sala de aula é o vosso palco. Não se deixem formatar. Os melhores professores que tive foram sempre aqueles que fugiam do padrão.

Cada miúdo é um miúdo, não há fórmulas rígidas e infalíveis. Se tivesse de vos pedir uma só coisa, seria que se dedicassem a conhecer realmente as crianças que têm pela frente. O que lhes faz brilhar os olhos, o que detestam e o que lhes faz sono. Oiçam-nos: eles são mesmo seres incríveis. Acreditem, não será tempo perdido – a partir daí 
saberão como os agarrar.

Preocupem-se mais em estimular a curiosidade do que em debitar a matéria do manual. Aqui que ninguém nos ouve, quem me dera que pudessem esquecer essa rigidez das metas curriculares e algumas das coisas que se obrigam os miúdos a saber hoje em dia. Expliquem-lhes porque aqueles assuntos importam, e eles quererão conhecê-los melhor. Empinar matéria, em pleno 
século XXI, é absolutamente anacrónico. Os factos desgarrados são dados adquiridos: estão aí à distância de uma pesquisa no Google. Mais do que lhes dizer o que aconteceu, expliquem-lhes porque aconteceu assim. Façam-nos pensar, despertem-lhes a curiosidade, incentivem-nos a partir à aventura. Ensinar é a arte da assistência à descoberta.

Valorizem outras coisas que não as notas – venho a crer que elas importam afinal tão pouco na vida. Mais do que seres cheios de conhecimentos acumulados, ajudem a formar boas pessoas e adultos interessantes. Ensinem-lhes os valores da partilha, generosidade e espírito de equipa. Quem não ajuda um colega jamais deveria ter lugar num quadro de honra.

E, por favor, não menorizem os miúdos – deem-lhes máxima liberdade acompanhada de máxima responsabilidade. Eles têm desde cedo que perceber que a escola é o seu trabalho, não o dos pais. Imponham regras e limites claros desde o primeiro dia, e expliquem-lhes as consequências. Já agora, expliquem isso também aos pais, que cada vez mais tratam as crianças como flores de estufa no deserto para compensar a sua crónica ausência.

Peço-vos, é verdade, uma combinação de talentos e competências que parece quase de alquimia. Mas isto não é mística: é bem possível e há quem o faça todos os dias por essas escolas do País. Bem-hajam.

Mafalda Anjos in Visão Online

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