Para médicos, enfermeiros, assistentes de viagens e tantos outros, o Natal e o Ano Novo são dias iguais aos outros. O ECO conversou com quatro profissionais que vão estar a trabalhar nesses dias.
Há profissões que nunca podem ser interrompidas. Para médicos, enfermeiros, assistentes de viagens, bombeiros e tantos outros, o Natal e a véspera de Ano Novo são dias iguais aos outros. O sentido de missão, o voluntarismo ou a necessidade fazem com que “abandonem” as suas famílias em prol do bem comum. O ECO conversou com quatro profissionais que nos dias 24, 25 de dezembro e 1 de janeiro vão estar a trabalhar.
Carla Cunha, enfermeira: “Vai haver ali umas horas em que a nossa filha não vai estar nem com um nem com outro”
Carla Cunha trabalha no bloco de partos do Centro Hospitalar Tâmega e Sousa, em Penafiel, e desde que começou a trabalhar, há cerca de 13 anos, que perdeu a conta aos anos em que está de serviço na noite de Consoada ou no dia de Natal. “Acho que acaba por custar mais à minha família a minha ausência. Custa-me muito sair de casa, deixá-los e ver as suas caras quando tenho de sair, mas depois de estar ao serviço para mim acaba por não ser tão penoso. Acabamos por criar laços com essas pessoas que ficam para a vida“, conta a enfermeira de 35 anos, ao ECO.
Com um marido também enfermeiro e uma filha de oito anos, a gestão familiar vai-se fazendo com o apoio dos avós, que ficam com a criança quando ambos estão a trabalhar. É isso que vai acontecer durante esta época festiva, dado que Carla Cunha vai trabalhar no turno da noite de 24 para 25 de dezembro, que começa às 20h, e o marido vai fazer o turno na tarde noutro hospital. “Vai haver ali umas horas em que a nossa filha não vai estar nem com um nem com outro”, lamenta.
Apesar de admitir que já está “habituada” a trabalhar nestes dias, Carla Cunha não deixa de lamentar que abdica de “momentos importantes” em prol de uma profissão que “monetariamente não é recompensadora”. “Sinto é que perco momentos que nunca mais recupero. A minha filha só tem oito anos uma vez na vida”, afirma. Contudo, o sentido de “missão” fala mais alto: “O nosso trabalho é uma porta aberta. Não exclui pobres, ricos ou nacionalidades. Estamos sempre lá e o Natal não é diferente”, atira.
Na noite da Consoada ou no dia de Natal, “todas as pessoas estão na mesma situação”, desde auxiliares, enfermeiros e até aos médicos, por isso, “vive-se um ambiente diferente”, conta a enfermeira. E como o serviço em que trabalha está relacionado “com o nascimento acaba por estar relacionado com o Natal. É bonito de viver!“, garante. Assim, estes dias são habitualmente “mais calmos”, dado que “só vêm mesmo as situações mais necessárias e urgentes”. Sem a correria de outras alturas, “as pessoas estão mais disponíveis” para estarem “umas com as outras” e “terem “um momento quase de família”, havendo margem para partilharem comida e algumas trocas de prendas simbólicas.
Patrícia Guerreiro, assistente de terra: “Há sempre trabalho. Há sempre alguém a chegar ou a partir”
É de sorriso na cara que Patrícia Guerreiro e a sua equipa fazem a gestão dos recursos humanos de várias companhias aéreas que operam no Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa. Em dias normais, trata-se de uma gestão de cerca 200 pessoas por turno, que vai desde a “alocação de tarefas de check-in, portas de embarque ou chegadas” até ao acompanhamento de passageiros ou ambulâncias para dentro da pista.
No Natal, a equipa é “mais reduzida”, dado que “há companhias aéreas que, por norma, cancelam alguns voos”, mas não deixam de ser dias movimentados. “Há sempre trabalho. Há sempre alguém a chegar ou a partir“, diz Patrícia Guerreiro, técnica de tráfego de assistência em escala, da Groundforce, em Lisboa. E se no Natal “as pessoas têm tendência a ficar pelas suas casas e não a viajar tanto”, por outro lado, na passagem de ano, o movimento volta a aumentar “porque as pessoas deslocam-se para celebrar”, sublinha.
A trabalhar no setor da aviação há cerca de 20 anos, tal como Carla Cunha, também Patrícia Guerreiro já perdeu a conta aos anos que passa longe da família. “É sempre difícil, mas foi a isso que nos propusemos. Uns anos calha a uns, noutros calha a outros, às vezes ficamos privados só do almoço de Natal, outras vezes da véspera… depende. Ou então temos de comer rápido que vamos entrar à meia-noite [risos]. É por aí”, conta, ao ECO.
Por isso, também este ano, Patrícia vê o “copo meio cheio”, dado que vai estar a trabalhar entre as 16h e meia-noite de dia 25, o que permite “almoçar com a família”. “Já não perco tudo”, brinca. Ainda assim, e apesar de já ter uma filha com 18 anos, admite que esta ausência acaba por custar mais à família. “Para mim há o sentido de dever a cumprir. Não posso estar a falhar para com os outros que estão escalados. Por muito que goste da minha família não vou conseguir não cumprir os meus deveres, por isso, acho que é pior para a família“, justifica.
Não obstante, a família acaba por se adaptar às circunstâncias. “Os filhos de quem trabalha aqui no aeroporto estão habituados a andar de mochila às costas a saltitar pela casa mais próxima que possa ficar com eles, quer seja avós, tios, porque os turnos assim o obrigam”, diz, acrescentando que foi aquilo que escolheram e que quem está “ao lado vai por arraste”.
Rodolfo Lopes, técnico de assistência: “Na noite de passagem de ano, os pedidos de assistência automóvel são absurdos”
Com uma filha de apenas nove meses, Rodolfo Lopes é técnico de assistência na Europ Assistance, empresa onde trabalha há já sete anos. Como este vai ser “o primeiro Natal” da filha, pediu para não trabalhar nesses dias e, por isso, juntamente com outros quatro colegas, vai fazer o turno da noite de passagem de ano. No entanto, à semelhança do ano passado, devido à pandemia, vai estar em teletrabalho. Ainda assim, o turno, que começa exatamente às 00h00 de 1 de janeiro e vai até às 08h00 da manhã não se adivinha fácil.
“Entre as 23h50 e a 00h10 temos aquela situação em que nada ocorre, está tudo bem (risos). A partir daí, as coisas começam a complicar-se“, aponta o jovem de 27 anos. Preparados para “todo o tipo de trabalho” e para gerir “todo o tipo de situações”, que vão desde “despistes, acidentes, pessoas presas nos elevadores”, avarias de automóveis ou assistência médica ao domicílio, há noites de passagem de ano “muito complicadas”, admite. Mas há exceções, sublinha: “Costumo fazer quase todas as noites da passagem de ano e em cinco anos tive três más. As restantes foram apenas noites muito movimentadas”, refere.
Em contrapartida, e à semelhança do que sucede nos hospitais, as noites de Natal são bastantes mais calmas. “No Natal, as pessoas não recorrem tanto a este tipo de assistência porque estão mais refugiadas em casa com as famílias”, diz Rodolfo Lopes, acrescentando que os pedidos de assistência acabam por acalmar a partir, “no máximo das 3h00 da manhã”.
Desde criança que adora o Natal e a passagem de ano, pelo que estar em teletrabalho suaviza um pouco o facto de estar de escala. “Custa muito menos em teletrabalho., porque não temos de sair de casa quando a família está toda presente, a festejar, às gargalhadas. [Na empresa] temos um ambiente acolhedor, comida à disposição, não nos falta nada, mas falta-nos a nossa família”, admite Rodolfo Lopes.
Joana Mascarenhas, médica: No dia 24 “não há tantas falsas urgências. É nos dias de jogo do Porto”
Joana Mascarenhas é especialista em Medicina Interna no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho desde 2011 e nesse tempo “só houve dois anos” que não trabalhou “no Natal”. Para esta médica nascida em Viseu, “esta é a altura do ano em que ninguém gosta de trabalhar”, mas admite que a gestão familiar era mais complicada quando tinha que se deslocar até à sua cidade-Natal.
“Não tenho filhos, mas tenho pais que só me tinham a mim, mais ninguém. Nos últimos anos, como vêm passar o Natal ao Porto custa-me menos do que antes me custava não ir lá. Por vezes ia passar o 24, saía de Viseu às 5h30 da manhã para estar em Gaia às 8h00 e fazer o turno de 24 horas do dia 25″, conta, ao ECO.
Este ano o “sorteio” ditou que está escalada para trabalhar o dia 25 de dezembro à noite, das 20h30 às 8h30 da manhã, para tratar de doentes internados. Eventualmente, fará também o dia 24 de dezembro nas urgências, onde estará responsável por acompanhar “todos os pacientes que entrem com prioridade amarela e laranja”, isto é, os casos mais graves, depois da pulseira vermelha. Tal como sucede no Centro Hospitalar Tâmega e Sousa, no serviço de urgência do hospital de Gaia as noites de Consoada costumam ser calmas.
“Nota-se que no dia 24 [de dezembro] as pessoas ainda querem estar com a família, com os idosos, e às vezes eles até estão piores e as pessoas não os trazem à urgência, mas depois, a partir do dia 25, já os querem deixar”, sublinha, acrescentando, no entanto, “que o último ano foi um bocadinho diferente”, devido à pandemia. “Não há tantas falsas urgências. É como nos dias de jogo do Porto. Enquanto o Porto joga não há tantas falsas urgências, quando o jogo acaba pode ter a certeza que aquilo começa a encher”, conta entre risos.
Apesar de referir que “se fosse hoje” talvez não escolhesse a “mesma especialidade”, dadas as mudanças na área da Saúde, Joana Mascarenhas encara o espírito de missão e de “sacrifício” com unhas e dentes. “Não é fácil, mas sabemos que tem de ser. É uma inevitabilidade“, conclui.