A Aldeia acordou, na manhã fria de 16 de Janeiro de 2007, a escutar o “dobrar” dos sinos que anunciavam mais uma morte. A notícia espalha-se tão rapidamente como o som triste dos sinos da minha Aldeia. Morreu o Ti'Horácio, empregado do bar da Casa do Povo. Era assim que muita gente o conhecia. Da minha casa olho o povoado com a altaneira torre da igreja e lembro um belíssimo poema de António Correia de Oliveira:
Quantas vezes há no sino,
Quantas vozes desiguais,
Desde que toca o baptismo
Até que dobra a sinais.
Coração, és como o sino
Na igreja do sentimento:
Ora bates de tristeza,
Ora de contentamento.
Se queres saber do meu peito,
Seu coração ouve um dia,
Que pelo tocar do sino
Conhece-se a freguesia.
Sino, coração da aldeia…
Coração, sino da gente:
Um a sentir, quando bate;
Outro a bater, quando sente.
A “Ponte”, onde tantas vezes deixámos fluir os nossos mais íntimos desejos e sonhos e “afogámos” as mágoas e tristezas nas águas, ora mansas ora tumultuosas, que sob ela passam, é também o ponto de passagem para uma viagem sem regresso (a última) para os que nos vão deixando para sempre. É por ela que fazemos a derradeira viagem entre o aquém e o d’além da ponte. Todos faremos um dia esse caminho, sem regresso, para irmos repousar à sombra da eterna cruz.
Como escreveu Marguerite Yourcenar - “ninguém ainda sabe se tudo apenas vive para morrer, ou se morre para renascer”.
Recordo o Ti Horácio com quem convivi durante mais de 30 anos.
Viviam-se os primeiros anos da revolução de Abril e as ruas da Aldeia voltaram a animar-se com o regresso dos seus filhos que viviam além-mar, em África. Com ele e outros, fiquei a conhecer um pouco da “outra África”, que não a da guerra, das lágrimas derramadas pelas mães na grandiosa procissão em honra de Nossa Sra. de Fátima (com o habitual sermão do Padre Leal), dos aerogramas, das madrinhas de guerra, mas que “por obrigação” cantávamos em hinos fascistas/nacionalistas, de “devoção à Pátria”, nas fileiras da Mocidade Portuguesa,organização juvenil do Estado Novo.
Compreendi a nostalgia dos que traziam Angola e Moçambique no coração. A muitos ouvi então dizer: "vim sem nada, só com a roupa que tinha no corpo".
Falava-me, por vezes, dum império idílico e dos tempos idos, mas felizes, que tinha passado em Angola.
Soube adaptar-se a uma nova vida, numa Terra que afinal sempre foi a sua.
Remexo no baú das recordações e não resisto contar como foi a chegada do Horácio, a Angola.
No porto de Luanda esperava-o o Nuno Vaz, também já desaparecido. Contou-me, várias vezes, que, logo após o desembarque, encontraram uma moeda (uma quinhenta) caída no chão, e de pronto o Nuno mandou o Horácio apanhá-la, ao que ele lhe responde prontamente: ainda agora cheguei e já queres que comece a trabalhar?!!! Disse-me que jamais voltou a encontrar uma outra. Ao retornar, agarrou as oportunidades de trabalho que lhe surgiram. Foi motorista de táxi e transporte público. Nas horas livres, arroteou as terras de família já invadidas por giestas e urzes, donde retirava parte do sustento para a sua família. Reformou-se, entretanto, e perante a magreza da pensão arranjou trabalho no Bar da Casa do Povo e condutor da carrinha do Centro Social. Na Casa do Povo soube merecer a amizade de muitas gerações de jovens, que choraram a sua morte tão prematura. Respeitou sempre as diferenças e foi respeitado por isso.
Norteou a vida pelos mais nobres valores, onde destaco a humildade e honestidade. Partiu cedo. Que a sua alma esteja em paz.
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