Pedro Pereira
Um dos mais frequentes talking points de populistas, sobretudo à direita, é o aparente excessivo número de parlamentares, numa manobra frequente de ataque à representatividade democrática que vem já do século XX.
Temos mesmo deputados a mais? Making long story short: não.
Em Portugal, este populismo já tinha vindo a ser carregado por um político, supostamente não radical, Rui Rio, que encontrou agora um compagnon de route para ajudar nessa demanda, a redução do número de deputados.
Esta é, sem surpresa, uma das principais bandeiras do partido populista CHEGA! e um argumento precoce da sua principal (e única) figura mediática. Em abril de 2019, assisti a um debate com representantes de vários partidos a propósito das eleições ao Parlamento Europeu do mesmo ano, no auditório da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Nesse debate, o representante da coligação Basta! era — quem diria? — André Ventura.
Numa das suas participações, Ventura debitou várias das ladainhas populistas que o caracterizam nos últimos anos e que dominaram a sua projeção política desde a formação do seu partido, entre elas, a necessidade premente da exclusividade obrigatória para os deputados à Assembleia da República (o que não veio a cumprir) e a urgente redução do número de parlamentares, argumentando que Portugal teria um excesso de deputados na sua assembleia legislativa. Mas será mesmo assim?
Número de deputados nacionais/milhão de habitantes (2015); Fonte: Jakubmarian.com
Tendo em conta apenas o panorama nacional, fica imediatamente a ideia de que Portugal não tem um excesso de deputados por habitante em relação ao panorama europeu (UE e não-UE), na medida em que a média dos países no mapa acima ronda os 51 parlamentares por milhão de habitantes, mais do dobro do rácio português. Tendo em conta apenas os países da UE (incluindo o Reino Unido, membro da UE à data de 2015), o rácio mantém-se acima do nacional com uma média de 38,9 deputados por milhão de habitantes — 77% superior ao português.
Contudo, a discrepância entre os países da UE é ainda maior quando se tem em conta a existência de assembleias legislativas regionais — uma figura da orgânica do Estado, que em Portugal só tem representação pelas Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores.
“Portanto… é fazer as contas.”
Em parlamentos de âmbito nacional (se dupla câmara, os números são a soma de ambos os ramos das assembleias legislativas), os números absolutos de parlamentares são:
Alemanha 709 | Áustria 244 | Bélgica 210 | Bulgária 240 | Chipre 56 | Croácia 151 | Dinamarca 179 | Eslováquia 150 | Eslovénia 130 | Espanha 615 | Estónia 101 | Finlândia 200 | França 925 | Grécia 300 | Hungria 199 | Irlanda 220 | Itália 951 | Letónia 100 | Lituânia 141 | Luxemburgo 60 | Malta 67 | Países Baixos 225 | Polónia 560 | Portugal 230 | Reino Unido 1442 | República Checa 281 | Roménia 466 |Suécia 349
A nível regional, temos (entre parêntesis o número de assembleias legislativas regionais):
Alemanha 1868 (16) | Áustria 440 (9) | Bélgica 288 (3) | Espanha 1208 (17) | França 1022 (10) | Itália 896 (20) | Países Baixos 570 (12) | Portugal 57 (2) |Reino Unido 279 (3). Os restantes não têm estruturas legislativas a nível regional.
Fazendo a soma das assembleias legislativas nacionais e locais, o número total de representantes (e população) é:
Alemanha 2577 (83,3M) | Áustria 684 (8,9M) | Bélgica 498 (11,5M) | Bulgária 240 (7M) | Chipre 56 (1,2M) | Croácia 151 (4,1M) | Dinamarca 179 (5,8M) | Eslováquia 150 (5,5M) | Eslovénia 130 (2,1M) | Espanha 615 (46,9M) | Estónia 101 (1,3M) | Finlândia 200 (5,5M) | França 925 (67M) | Grécia 300 (10,7) | Hungria 199 (9,8M) | Irlanda 220 (4,9M) | Itália 951 (60,4M) | Letónia 100 (1,9M) | Lituânia 141 (2,8M) | Luxemburgo 60 (0,61M) | Malta 67 (0,51M) | Países Baixos 225 (17,3M) | Polónia 560 (38M) | Portugal 230 (10,2M) | Reino Unido 1442 (66,7M) | República Checa 281 (10,7M) | Roménia 466 (19,4) | Suécia 349 (10,2M)
Por último, o rácio final de deputados (nacionais e regionais) por cada milhão de habitantes é de:
Alemanha 30,9 | Áustria 76,9 | Bélgica 43,3 | Bulgária 34,3 | Chipre 46,7 | Croácia 36,8 | Dinamarca 30,9 | Eslováquia 27,3 | Eslovénia 61,9 | Espanha 13,1 | Estónia 77,7 | Finlândia 36,4 | França 13,8 | Grécia 28,0 | Hungria 20,3 | Irlanda 44,9 | Itália 15,7 | Letónia 52,6 | Lituânia 50,4| Luxemburgo 98,4 | Malta 131,4 | Países Baixos 13,0 | Polónia 14,7 | Portugal 22,5 | Reino Unido 21,6 | República Checa 26,3 | Roménia 24,0 | Suécia 34,2
Rácio total médio da UE: 43,3 deputados/milhão de habitantes (92,4% acima do rácio português)
Tendo em conta que existe uma evolução mais ou menos reprodutível de redução da representatividade com o aumento da população de determinado país (resultado da impossibilidade de manter um rácio fixo aplicável para países com 1 ou 80 milhões de habitantes), é expectável que Portugal tenha rácios superiores a países como Espanha, ou França, e inferior aos de Malta, ou Irlanda. Contudo, se feita a comparação direta com países de população similar (9–11 milhões de habitantes), Portugal continua a ter um aparente défice relativo de representatividade parlamentar, ficando apenas atrás da Hungria (que não tem órgãos legislativos regionais).
Áustria 76,9 | Bélgica 43,3 | Grécia 28,0 | Hungria 20,3 | Portugal 22,5 |República Checa 26,3 | Suécia 34,2
A democracia é um sistema imperfeito, mas é o melhor que a Humanidade já criou para gerir a sociedade de forma justa, representativa e com responsabilização popular dos agentes políticos — mas tem um custo. Deveria, ainda assim, ser um preço aceite pela sociedade, na medida em que as alternativas serão sempre mais dispendiosas em custos, representatividade, justiça social e liberdades. E é essa a razão pela qual é tão atrativa a dois grupos políticos: partidos big-tent e partidos/movimentos populistas e anti-democráticos.
No primeiro caso — PSD em Portugal —, porque reduzem a importância de partidos minoritários, já castigados pelos círculos eleitorais com método d´Hondt e sem qualquer círculo nacional de compensação, inflacionando a sua representação parlamentar em relação ao voto popular.
No segundo caso — o CHEGA! em Portugal —, porque são fenómenos políticos de hit and run, na medida em que capitalizam o descontentamento geral e o desinteresse na política tradicional em momento de crise económica e/ou social, atingindo expressões significativas do voto abstencionista e de protesto. Contudo, tão rapidamente escalam como colapsam, particularmente em movimentos unipessoais. Daí que sejam adeptos da redução da representatividade, que lhes permite eleger uma percentagem desproporcionada de deputados em relação ao voto popular, protegendo-se do colapso eleitoral de médio prazo.
A redução de 230 para 180 deputados geraria uma putativa poupança de despesa da Assembleia da República a rondar os dois a três milhões de euros, perfeitamente residual no Orçamento do Estado. Partidos como o CHEGA! ou o PSD querem, assim, sem qualquer reforma no formato do sistema eleitoral, vender a representatividade de regiões de baixa densidade e partidos minoritários por dois milhões de euros. Em Portugal, este é o custo da democracia. Portugueses de territórios menos povoados (em especial do interior) teriam ainda menos voz e menos pluralismo como resultado desta panaceia defendida por Rui Rio e André Ventura.
O que Portugal precisa não é de menos deputados ou de uma redução significativa da sua remuneração — o que teoricamente cria mais incentivos à corrupção, menor produtividade e maior absentismo parlamentar. Precisa, antes, de um conjunto de reformas do sistema eleitoral e do funcionamento da Assembleia da República, de forma a melhorar a representatividade do voto popular e do território na composição da Assembleia da República e a aumentar a responsabilização de cada parlamentar:
Círculo eleitoral nacional de compensação (como defendido pela Iniciativa Liberal na sua proposta de reforma do sistema eleitoral), permitindo o ajuste das deformações introduzidas pelos círculos eleitorais regionais e método d´Hondt, que penalizam dois grupos: distritos de baixa densidade populacional (muito território para gestão e baixa população para ser representada na AR) e partidos minoritários. Algo que até já existe em Portugal, na eleição legislativa regional dos Açores;
Estudar a instituição de formas alternativas de organização e distribuição do mapa eleitoral, nomeadamente pela constituição de círculos eleitorais mais equitativos em área e população (usando, por exemplo, o sistema NUTIII ou um novo) e círculos uninominais — aumentando a proximidade entre eleitores e eleitos;
Alteração do Regimento da Assembleia da República, de forma a penalizar absentismo parlamentar, melhorar o escrutínio das faltas por trabalho político e representação externa, audição regular e pública das despesas dos gabinetes e grupos parlamentares com assessorias;
Promoção do estatuto de exclusividade, com compensação financeira adequada, de forma a torná-lo atrativo a deputados com rendimentos prévios superiores;
Em Portugal não temos deputados a mais. Temos, sim, um divórcio entre os eleitos e os eleitores, plasmado nas taxas de abstenção superiores a 50%, no crescente número de votos brancos e nulos e um geral desinteresse pela política, levando a uma radicalização do voto abstencionista/de protesto e nas faixas etárias mais jovens. As decisões que tomamos hoje moldarão a democracia portuguesa na qual os jovens de hoje viverão. Também eles têm de fazer parte da discussão. Venha ela. E, claro, venha também a coragem para reformar.
Fonte: Observador
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