Porque é que eu penso que os pais são tão pouco atentos à função do brincar? Em primeiro lugar, porque talvez tenham brincado de menos e não tenham tido uma infância tão risonha e tão feliz como dão a entender. Por outras palavras: os pais foram muito menos crianças do que desejariam ter sido. Ou tiveram infâncias mais infelizes do que gostavam de ter tido! Depois, porque por melhores pessoas que sejam, foram-se deixando "atropelar" de tal forma por uma vida pessoal, amorosa e laboral, na qual, em muitos momentos, não se reconhecem, e onde brincar parece ser tudo aquilo que menos conseguem fazer. E, ainda, porque se inibem de fazer as escolhas que todos os pais têm de fazer, em função do que entendem sensato para o crescimento dos seus filhos. Um pouco por tudo isso, os pais vão lidando com o brincar como se não fosse tão sério como, de facto, ele é. Como se, afinal, os pais não conseguissem criar um mundo para os filhos diferente daqueles que construíram, hoje, para si próprios. Que concilie o melhor da sua infância e o que ela deve ter de mais saudável para que as crianças cresçam melhor.
Para que serve brincar? Brincar serve para aprender! Serve para conhecer! Serve para experimentar! Serve para pôr problemas e para os resolver. Serve para ligar corpo, cabeça e alma num só gesto. Serve para pôr afeto, movimento e paixão onde só existia razão. Serve para lapidar a agressividade, e aprender a rivalizar, a competir e a suplantar, sendo-se agressivo com lealdade, dentro das regras e "com maneiras". Serve para ir ao encontro do outro - do estranho - e interpelá-lo, ganhando terreno ao desconhecido. Serve para colocar imaginação e fantasia e compreender. Serve para descobrir! Serve para espantar e para aventurar. Serve para conviver com o erro, com o insucesso e com a precipitação, e para robustecer a tolerância à frustração com que se liga paixão e garra com paciência, com humildade, com determinação e com perseverança. Serve para pro-criar e re-criar. Serve para se fazerem sínteses, em tempo real, e interpretar a realidade, agindo sobre ela de forma afoita e empreendedora e, por vezes, cooperativa. Serve para nos ligarmos uns aos outros e para criarmos laços onde, dantes, existiria indiferença ou desconfiança. Brincar serve para aprender a pensar! Serve, com o auxílio da pluralidade de todos os desafios que o brincar nos traz, para construir uma identidade, aberta e singular, que nos faça reconhecer e nos torne reconhecidos. E serve para "costurar" a autonomia. Brincar ensina a liberdade. Constrói-se na igualdade e conquista a fraternidade. Brincar ensina a simplicidade e a honestidade. Brincar serve para ligar a tristeza e o riso e descobrir que sempre que uma criança brinca "o mundo pula e avança". Em resumo, o mundo mudaria sem revoluções se, para tanto, acarinhássemos o brincar.
Por tudo isto, brincar é mais importante para o aprender do que talvez o aprender para o brincar. Daí que eu gostava que ficasse claro que esta clivagem "trabalhos de casa" versus "brincar" é batoteira. Como se os amigos do brincar fossem contra os trabalhos de casa e vice-versa. E isso não é verdade. Só que as crianças já trabalham demais. Comparativamente, trabalham muito mais do que os pais!! Em termos relativos e em termos absolutos. E, num contexto como este, ter trabalhos de casa, em versões XXL, que repetem, repetem, repetem - como se se mecanizar fosse pensar - é absurdo. Não será mais engraçado ir à procura de uma linha reta no caminho da escola para casa? Ou explicar, ao sair-se da escola, porque é que os Pokémon são tão verdade como D. Afonso Henriques, compreendendo para que é que um e outros servem? Não é mais importante descobrir para que é que serve, fora da escola, tudo aquilo que se aprende nela? Os amigos do brincar não são contra os trabalhos de casa! Que fique isso claro. Só que devia ser proibido, a todos nós, levar trabalho para casa. Porque isso ou significa que a nossa família não é importante, o suficiente, quando comparada com ele; ou que o trabalho serve para nos escondermos de tudo aquilo que não somos capazes de dizer. Aliás, o brincar é tão importante para o aprender que enquanto o aprender não se tornar amigo do entusiasmo não é aprender. O brincar é tão importante para o aprender que o primeiro entre todos os trabalhos de casa (ou o primeiro de todos os "deveres", como se diz) devia ser... brincar!
Mas brincar parece ser supérfluo para a escola. O espaço físico do recreio não é amigo do brincar, porque a escola continua a imaginar que brincar é uma atividade de primavera/verão. O tempo de recreio (5 minutos ou 10 minutos são coisa que se admita?) não é amigo do brincar. E castigar uma criança, não a deixando ir ao recreio, quando um professor acha que ela se porta mal, é confundir o recreio com a sobremesa que se está proibido de saborear quando se é "pisco" a comer a sopa (quando o recreio é "proteína" indispensável, tão importante como outro compromisso qualquer). E depois, (desculpem mas, um dia destes, a identidade de género quase parece uma discriminação sexual com que a Natureza nos onerou), não se esqueçam que os rapazes e as raparigas não têm bem um mesmo brincar. E que a escola e os pais parecem querer que todos brinquem da mesma maneira, o que começa a ser uma espécie de discriminação para o brincar dos rapazes.
Brincar é, pois, uma Torre de Babel. A linguagem de todas as linguagens. Anterior à música e à palavra! Crianças que não brincam tornam-se adultos que se acanham, que se encolhem, que se acobardam. Tornam-se pessoas resignadas. Pessoas que acham a ironia uma atrapalhação. Que não arriscam e que não lutam por um sonho. Tornam-se pessoas que confundem sobreviver com conviver. Adultos que falam mais para dentro do que para fora. Que confundem o sisudo com o sério. Que são insatisfeitos e arrependidos em vez de serem pessoas desassossegadas, com fé, mas em paz. Crianças que não brincam tornam-se, finalmente, adultos vaidosos, que sendo melhores do que calculam, valem muito aquém daquilo que supõem.
Ora, brincar é tão precioso e é tão indispensável que funciona como "A vitamina" do crescimento! É, pelo menos, tão importante como a escola! Mas brincar serve, também, para criarmos nas crianças uma alternativa saudável a um mundo de tecnocratas "sem mundo" e sem "escola de vida" que parecem querer fazer das crianças "produtos normalizados". Brincar é, pois, o exercício do direito à indignação e à insubmissão. E é, de entre tudo o que há de mais imaterial, o mais sublime património da Humanidade.
Então, este empenhamento exagerado em criar adultos brilhantes é improdutivo. Não são, regra geral, as crianças que tiram sempre melhores notas na escola que se transformam em adultos brilhantes! Treinar crianças para serem adultos brilhantes é submetê-las a uma "ideologia" onde a vaidade, no imediato, parece dominar sobre todas as coisas. E seria bom que os pais não perdessem de vista quem foram os adultos que se distinguiram entre os colegas da sua escola: aqueles que tiravam apenas boas notas nos testes ou aqueles que, por ensaio e erro, foram definindo um percurso singular, "com assinatura", por mais que oscilassem, por vezes, no seu rendimento escolar?
Os pais não podem nunca deixar a verdadeira "entidade reguladora" da vida dos filhos. Que tem de ser amiga do brincar! Ou seja, é bom que os pais entendam que a escola tem caminhado para uma espécie de "linha de montagem" de jovens tecnocratas de fraldas para que, depois, passem a ser jovens tecnocratas de mochila. E, de preferência, que se tornem "ídolos" antes dos 30 anos. Um crescimento assim é mentiroso. Porque, sejam quais forem os métodos com que cresça, não consta que quem, em aparência, cresça primeiro acabe crescendo melhor.
A mim, parece-me que os pais vão cedendo demasiado diante desta ideia de educação que representa uma tendência um bocadinho "selvagem" de capitalismo estendida à escola! Uma ideia que, ao mesmo tempo, parece querer coletivizar o crescimento das crianças. Que é populista e individualista. Vaidosa, amiga das desigualdades sociais e que - quando confunde a hostilidade com que se falam "verdades" com a delicadeza com que se é honesto, transparente e verdadeiro; ou quando acarinha "primeiro o eu" enquanto despreza a consideração e a estima - é amiga da mais acabada má-educação. Diante dela, os pais têm o dever da insubordinação. Definindo escolhas, claro. Mas percebendo que se a escola representa a verdadeira revolução tranquila do século XXI, está nas mãos deles não permitir que as crianças trabalhem com parcimónia e com maneiras. É da sua responsabilidade reconhecerem que as crianças precisam de brincar, pelo menos, duas horas, todos os dias. E que os tempos de família - a conversa sem agenda, o jantar sem televisão e sem telemóveis, o direito ao mimo e ao colo, e a forma como se trocam histórias e, com elas, pais e filhos se conhecem melhor, todos os dias - são insubstituíveis. Amar - é bom que isso nunca se perca de vista - é de tudo o que há de mais precioso e mais difícil. Aquilo que exige mais tempo e gestos mais claros e delicados. Enquanto mais escola e mais trabalho representar menos família e menos brincar, os pais estão a distanciar-se do amor, estão a distanciar-se dos filhos e, com isso, a distanciá-los do futuro. Porque, afinal, uma criança que brinca tem "a vista na ponta dos dedos". Tem "língua de perguntador". É aventureira e é sensata. Não se cansa de perguntar: "porquê?". E não precisa de ser "A melhor do mundo" porque lhe basta ser "a melhor do mundo para alguém". Assim ela brinque primeiro e trabalhe depois!
Eduardo Sá in Leya Educação
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