Existe um perigoso sentimento que tem atravessado séculos da nossa história. Com maior acuidade e gravidade durante o Século XX até aos dias de hoje. De maior acuidade e gravidade, porque foi durante o Século XX, até aos dias de hoje, que se consolidaram as ideias e os conceitos de justiça, de cidadania e de dignidade da pessoa humana. Esse perigoso sentimento é o da impunidade. Mercê de razões conjuncturais díspares, a verdade é que desde o regicídio, passando pelos hediondos crimes de tortura e de sangue do Estado Novo, até às delapidações da riqueza nacional e do fomento do fatal endividamento que se sucederam em plena democracia, existiu um fio condutor: impunidade. Tal sentimento é dos mais desgastantes e corrosivos para a moral de um povo. Porquanto enraíza sentimentos contrários aos da ética e da responsabilidade. Ao ponto de se desvalorizar a seriedade e aplaudir-se a audácia. De se descredibilizar a inteligência e de se louvar a esperteza. Bom, não é ser-se sério e inteligente. Bom, é ser-se vencedor, não importa como. É ter sucesso. E, assim, a mentira entrou nas nossas vidas, nas nossas, casas, nos nossos projectos. A mentira para conquistar votos, para se chegar ao poder, para se conseguir o que se quer sem esforço ou mérito. E, assim, se afastou o mérito das nossas profissões, das nossas escolas e dos nossos desejos. O mérito não abre portas. A mentira, abre. Pelo menos o tempo suficiente para se alcançar outra porta. Porque este é o resultado natural de sucessivos episódios de se ver que quem roubou, mentiu ou matou ficou impune. Todos, eles, notórios casos de impunidade. Sim, notórios. Não é o roubo de esquina, a morte passional ou a pequena burla. É a impunidade dos crimes nas esferas das elites. Aquela que descredibiliza a Justiça, aos olhos do povo, porque firma duas Justiças: para pobres e para ricos. Algo que, só por si, é inadmissível. A que é, também, a pior impunidade de todas, porque inquina a hierarquia do exemplo, porque o exemplo que vem de cima, é o pior. E pior, ainda, quando contraditoriamente acompanhada de retórica evocativa de princípios éticos, de respeito, de direitos e de morais. Pior, porque o mau exemplo conspurca os valores apregoados. Pois que pior destino se pode dar a ideais e conceitos éticos, do que prostituí-los ao serviço dos seus antípodas?
“A nossa condição humana impõe que não nos deixemos narcisar somente pelo que se diz de bom nos Lusíadas, mas que sintamos sentimentos de indignação e revolta e repudiemos tudo o que cheire a indignidade nacional! Todos sentem, mesmo quando é a seu favor, que a justiça não é imparcial e se deixa influenciar por causas estranhas, que às vezes são bem do nosso conhecimento, por estarmos dentro da conjura… e isto arrepia e revolta!”
Porque pagar é preciso. Cobrar é urgente. Julgar bem… logo se verá quando se tornará importante. Não será para já, como não foi no passado. Mas haverá de ser, um dia. Quando se começar a fazer o que ainda não foi feito. Como canta Pedro Abrunhosa!
Fonte: Aventar
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