Há duas semanas, 70 personalidades lideradas por Mário Soares, quase todas de esquerda e dizendo-se intérpretes da vontade popular, escreveram uma carta ao primeiro-ministro exigindo-lhe mudança de políticas ou, em alternativa, a sua demissão.
Note-se, em primeiro lugar, a arrogância dos signatários da carta: consideram-se os justos representantes do clamor popular.
Não sabemos quem, de entre o povo, lhes passou o mandato popular. Nem sabemos de que forma ou em que momento foi esse mandato conferido. E não sabíamos – eu, pelo menos, não sabia – que o povo, nos seus milhões de vontades e aspirações, consegue formar uma vontade una, indivisível, totalitária, revelada aos 70 e por estes apropriada.
Sabemos apenas, ou não fosse a esmagadora maioria dos signatários de esquerda (o que oferece, como se sabe, o pressuposto da bondade e da identificação com o bem comum), que se sentem justos representantes do povo.
Eles é que sabem, os 70. Não foram eleitos, os 70; não foram a votos, os 70; não pediram mandato, os 70; nem receberam procuração, os 70. Mas isso são pormenores: eles é que sabem. Porque sim. Talvez por serem de esquerda.
Note-se, em segundo lugar, o desprezo, porque é disso que se trata, com que os signatários tratam a Constituição e, já agora, os portugueses (sim, os portugueses).
A Constituição tem regras sobre a nomeação e demissão do governo – regras que os signatários deviam conhecer, até porque andam sempre com a Constituição no verbo – e que de forma alguma autorizam uma espécie de conselho de sábios a arrogar-se o direito ou dever ou poder de determinar o momento a partir do qual um governo deve ser demitido ou pedir a sua demissão.
E essas regras pressupõem, basta lê-las, a democracia parlamentar. É o parlamento que representa, para o que ora nos interessa, a vontade popular. E é no parlamento que se formam as maiorias necessárias para manter ou não um governo.
Aquilo que os signatários da carta demonstram pelo parlamento e, por isso, pelos portugueses que o elegeram, não é outra coisa senão desprezo, como se o parlamento não servisse para nada ou, pior, como se o parlamento não representasse a vontade popular.
Serei só eu a considerar grave que haja deputados (sim, há deputados entre os signatários) a querer, através desta carta, obter algo que, negado nas urnas, nem sequer tentaram no parlamento?
Note-se, enfim, a displicência dos signatários.
Críticas, é só lê-las espalhadas pelos parágrafos da carta. Soluções alternativas, daquelas que se podem propor no parlamento, estilo faça-se x ou legisle-se no sentido y, é que está quieto. Mande-se abaixo o governo, porque sim e porque não é de esquerda. Para fazer o quê é que não se sabe. Parece que não é preciso e que basta dizer crescimento, crescimento, crescimento.
Esta carta, no consenso que arrogantemente pretende iludir e no espelho que procura ser da elite portuguesa, funciona afinal como paradoxo.
O país entrou em pré-bancarrota depois de décadas de irresponsabilidades que foram consentidas, toleradas e muitas vezes aplaudidas apenas porque embrulhadas num qualquer amanhã que canta, porventura ao gosto de alguns dos 70. Esta carta representa tudo o que Portugal foi e tudo o que, por três vezes na nossa história recente, nos levou a pedir ajuda externa.
Nada me move contra os 70 signatários. Sou admirador de uns, leitor compulsivo de alguns e até, orgulho-me, amigo de outros. Mas nem a admiração, nem o gosto nem a amizade me impedem de considerar que o caminho defendido pelos 70, na parte que tem de perceptível, procura a perpetuação de um modelo socialista que não consigo defender e que nos arruinou.
Fonte: iOnline
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