quinta-feira, 1 de março de 2018

A morte do Professor


Não podia deixar de realçar a pertinência do excelente artigo de opinião do Luís Costa do Quadro Negro que nos retrata a dura realidade daquilo em que o professor dos nossos dias se transformou, como ele diz num dos comentários, "o erro de tudo executar, de obedecer a tudo, de querer fazer de tudo, de tudo querer abarcar... acelera não o respeito, mas o contrário, não a autoridade, mas o contrário, não a autonomia, mas o contrário, não a motivação, mas o contrário.

Muito por ação política conscientemente manipuladora e exploradora do sacrifício e da dignidade de uma classe profissional, mas também com amplo consentimento impotente de quem obedece, contra a sua vontade e contra a sua razão, a verdade é que todo o ónus do insucesso está, atualmente, sobre os ombros dos professores. Aos alunos exige-se o mínimo e aos encarregados de educação ninguém exige praticamente nada. Até quando a corda aguentará?

O Ministério da Educação (ou, melhor dizendo, da Poupança Nacional) tem vindo a anafar gordurosamente o seu hediondo monstro burocrático, que produz números tão vistosos quão ilusórios e efémeros. O seu único leitmotiv é produzir tais números, ou seja, tais fins, sem olhar a meios. Esclareço: cilindrando, se necessário for, aqueles que ainda têm a seu cargo a incumbência de os atribuir (algo que também já tem os dias contados), ainda que para tal seja necessário desviá-los constantemente do seu genuíno e precioso trabalho (o pedagógico, pois claro) para os emaranhar constantemente em autênticas teias de burocracia de autojustificação, de autoavaliação, de exposição permanente às câmaras de vigilância intimidatória, ou de supervisão, se quisermos ser mais “assertivos”. E o que estas câmaras não conseguem enxergar, espera o Ministério que seja monitorizado pelo segundo setor, o da inquisição parental, hoje muito mais vocacionada para esta forma de pressão do que para a responsabilização e acompanhamento diário dos educandos. É (apenas) uma das expectáveis consequências de toda a ação terrorista que o ME tem vindo a realizar, sobretudo na última década. Resultado: estamos, cada vez mais, num mundo escolar às avessas.

No entanto, a desmesura e a brutalidade burocráticas, ainda que generalizadas, não são similares em todas as escolas: se numas é mau, noutras é pior ainda. Há contextos (em acelerada multiplicação) onde o referido espartilho já sufoca. É o caso das escolas que fizeram compras na Central de Promoção do Sucesso Escolar Injetado (os enlatados como o PNPSE e os seus Planos e Ação Estratégica, os Fénix, as flexibilizações, os contratos de autonomia dependente e à condição…). Aí, os professores comem papéis, bebem papéis, vestem papéis, escrevem papéis, imprimem papéis, furam papéis, agrafam papéis, arquivam papéis, enviam papéis, distribuem papéis… sem saberem já muito bem qual é o seu verdadeiro papel (de figurantes). Mas também aqui há exceções. Em algumas destas unidades fabris de serviço instrutivo certificado não se usa tanto o papel, sendo já mais comum o recurso aos documentos digitais, o que é melhor, porque a natureza é poupada, mas também tem um senão: dispara a tralha burocrática e o tempo consumido com nanopormenores de forma.

Talvez seja paranóia minha — consequência de uma longa e penosa década de trincheiras — mas quer-me parecer que, paulatinamente, todas as reuniões, mesmo as de avaliação dos alunos, têm muito pouco de pedagógico e muito mais de prestação de contas. Em certos casos, também de ajuste. Penso que está a ganhar clara ascendência, a caminho da exclusividade, a função “supervisora” do trabalho dos docentes, aos quais são pedidas todas as justificações e atribuídas todas responsabilidades. É uma onda crescente que tem no seu ventre, implícitas, muitas mensagens de desconfiança relativamente à competência e ao profissionalismo dos professores. Vem de cima, há muito tempo, e é facilmente captada pela comunidade, traduzindo-se numa desautorização constante e numa subalternização crescente dos docentes, que — ou porque os mandam ou porque receiam — consomem cada vez mais tempo (excessivo mesmo, sem hipérbole) a conceber, a redigir e a preencher documentos que, direta ou indiretamente, são justificações do que fizeram ou não fizeram (autênticos mea culpa), avaliações diretas ou indiretas do seu trabalho, indução de ações e de métodos, exposição perante os seus pares, perante os alunos e perante os encarregados de educação… Enfim, inadmissíveis intimidações e repugnantes formas de pressão para o almejado cem por cento.

“Acreditam” as iluminuras políticas que este big brother resulta. E resulta mesmo, na minúscula e imediata aceção que eles subentendem. Há, porém, um mundo de consequências, extremamente negativas, que só o tempo vai desnudar. Todavia, uma será muito mais precoce. Não, não é o dito burnout da classe docente, é mesmo a morte do Professor. Disse bem: a morte do Professor.

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