segunda-feira, 12 de março de 2018

Entrevista: Jan de Groof: "Os peritos são os professores. Nós somos os burocratas"


Especialista em políticas educativas, o belga Jan de Groof, que foi conselheiro da UNESCO e tem apoiado como conselheiro reformas educativas em vários países, veio a Portugal falar sobre o futuro do setor, a convite da Universidade Europeia. Defende que o país tem de recuperar o investimento no setor, que desceu a pique nos anos da crise, e dar mais autonomia às escolas e aos professores.


As Nações Unidas assumiram há três anos metas ambiciosas para a educação até 2030. Diria que houve progressos assinaláveis desde então?

Quando era enviado especial para o Direito à Educação na UNESCO, há alguns anos, tive de apresentar um relatório ao diretor-geral. E o que propus foi uma nova geração de direitos na educação, de conceção das políticas educativas. Não apenas do que a UNESCO e as Nações Unidas mencionam como os quatro "A": disponibilidade [availabillity na resposta original] de escolas, acessibilidade, aceitabilidade das necessidades educativas e a adaptabilidade da educação. Existe esta terminologia algo complexa da ONU. Eu propus um novo mantra, chamemos-lhe assim...

Que se distingue em que aspetos?

Em primeiro lugar, pela consciência [awareness] da importância da educação e do direito à educação. Em segundo lugar, pela sua defesa [advocacy]. Não basta estar consciente de um direito: temos o dever de o defender. Temos de ter os stakeholders, as organizações não governamentais de direitos humanos, membros dos parlamentos, académicos, a advogar a importância da educação para a sociedade. Em terceiro lugar, a adequação. Nos Estados Unidos há um grande negócio em torno de ações dos pais contra as escolas em que argumentam precisamente que estas não eram adequadas para os seus filhos. Também a responsabilização [accountabillity]. Das escolas, dos professores, dos diretores, da sociedade, do legislador, dos governos, mas também dos pais e das crianças, dos estudantes. E acrescentei-lhe um quinto A: a autonomia. Quando falo com ministros da Educação, em vários locais, costumo dizer-lhes: "Senhor ministro, você não é o perito."

Quem é o perito? Quem tem a responsabilidade de ensinar?

É o professor. Esses são os peritos. Nós somos os burocratas. Os peritos são os diretores, a equipa de professores, e devemos confiar neles. É claro que a confiança deve ser acompanhada de responsabilização. Não deve ser apenas o ministro a centralizar as políticas, a monopolizar os esforços. Se pensarmos nos objetivos da educação para 2030, os objetivos de sustentabilidade, o quarto objetivo é o direito a educação inclusiva de qualidade.

É uma base para todos os outros?

Exatamente. Na minha pesquisa tento detalhar o que é uma hierarquia de direitos educativos. Não existe um consenso entre peritos da legislação internacional, constitucionalistas. Existe o direito à vida. E a questão é o que vem a seguir ao direito à vida. De acordo com o Tribunal Constitucional da África do Sul, e estou a citar um dos primeiros casos, de 1997, deste tribunal - que é um dos mais poderosos e inspiradores tribunais constitucionais do mundo - "o primeiro direito fundamental, antecedendo mesmo o direito à vida, é o direito à igualdade". Compreende-se bem essa posição tendo em conta o apartheid. E esta igualdade aparece associada ao direito à educação, que permite a todos os seres humanos obter a igualdade.

Em Portugal existe um fosso muito óbvio nos resultados dos alunos, relacionado com o contexto socioeconómico de onde estes vêm. Como se contorna esse círculo vicioso?

Esse é de facto um grande tema. É preciso ter consciência da importância da educação na sociedade. Eu recorro muito frequentemente a valores de referência internacionais. Usando estes indicadores, quando olhamos para Portugal, há melhorias mas também há algumas fraquezas. Um dos pontos fracos em que estão abaixo da média da UE, tanto a 15 como a 27, é a taxa de abandono, o abandono escolar precoce continua a ser um problema. Entre os adultos, na faixa etária entre os 25 e os 64 anos, mais de 25% não acabaram o ensino secundário. Essa faixa com baixas qualificações está também associada a famílias carenciadas, com rendimentos baixos e taxas de desemprego mais baixas. Por isso há uma estreita ligação entre o abandono e essas condições de desvantagem. Por isso, vocês têm de garantir que a vossa política educativa conduzirá a igualdade de oportunidades. Uma das soluções que proporia a Portugal seria a aposta noutra área em que não estão a atingir o nível de outros países: a aprendizagem ao longo da vida.

Portugal apostou bastante na formação de adultos há alguns anos, mas o esforço foi quase suspenso devido à crise económica...

Deve haver um forte compromisso no investimento na investigação, na educação, no ensino superior. Os cortes orçamentais complicam a situação de forma dramática. Não percam uma geração, porque este desinvestimento na educação será verdadeiramente dramático. Deve haver um esforço comum de todos os envolvidos, mas é acima de tudo uma responsabilidade do Estado. Não apenas no investimento mas também em dar muito mais autonomia e confiança às comunidades educativas locais. Esta ideia de centralizar a educação está definitivamente ultrapassada. É claro que tudo isto deve ser feito com padrões de qualidade.

Como se conjuga a maior autonomia dos estabelecimentos com a necessidade de concretizar determinadas mudanças?

Nos relatórios anuais do Fórum Económico Mundial há um indicador muito interessante sobre Portugal. Todos os anos, quando as pessoas são questionadas sobre o que mais dificulta a um empreendedor a criação de uma empresa, a resposta...

... é a falta de trabalhadores qualificados?

Essa é a quinta resposta mais frequente. A primeira, e isto é obtido de forma sistemática, através de métodos científicos de pesquisa, é a burocracia governamental. Tendo isso presente, Portugal deveria avaliar a sua política educativa, tendo em mente essa ideia de descentralização e de autonomia.

Fonte: DN

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