sábado, 3 de março de 2018

O inferno na terra... ou talvez não...

Hoje, quando visitei o grupo FaceProf, deparei-me com um texto simplesmente brilhante! Brilhante pela realidade nua e crua da vida dos professores deste país.
Achei por bem publicá-lo aqui no Prof-Folio, com a devida autorização do autor.
Obrigado Mário Costa por conseguir descrever tão brilhantemente a sua vida quotidiana que poderá ser a de qualquer um de nós!


Sexta-feira. Percorro de carro os 200 metros que me separam de casa enquanto vejo o céu a ficar escuro como breu. Paro o carro no estacionamento do prédio e ainda arrisco ir às caixas de correio ver se tem alguma correspondência importante para além do lixo habitual distribuído aos magotes pelos hipermercados e afins. 
O preço merecido são umas pingas grossas a bater-me no crânio quase ermo de cabelos. 
Chego a casa mesmo a tempo de recolher o canário que já tinha iniciado uma dança perigosa impulsionada pelas grossas pingas de chuva e o vento forte que na altura do sexto andar é ainda mais pronunciado. 
Levei o carro com a intenção de ir almoçar a um restaurante onde almoço com mais frequência e melhor, mas mudei de ideias quando pressenti que poderia ter companhia indesejável. 
Assim, optei por almoçar no café próximo da escola, que costumo frequentar à noite e onde anseio ver o Porto-Sporting ou Sporting-Porto, não interessa, terminando mais uma semana temível de trabalho. 
Impossível! 
Terminei a manhã completamente perdido no meio da confusão, aos berros, numa dita aula de Apoio ao Estudo, numa turma tão difícil como todas as outras. Já tinha iniciado a manhã na “melhor” das turmas, apanhando uma das miúdas em diálogo escrito com a colega da mesa ao lado. Tirei-lhe a folha de papel e dobrei-a guardando-a no bolso antes de a mirar num relance. Brincadeiras de miúdas distraídas que procurei censurar sem mais nenhuma repreensão. 
Em casa li o diálogo que interrompi quando uma perguntava a outra se gostava das aulas de História. “Achas? Respondia a outra, olha para a minha cara!!”.Têm dez anos, frequentam o quinto ano e eu tentava explicar-lhes as fomes e as pestes do século XIV... Para além disso a aula de quarta-feira tinha terminado com um azedar de relações com a turma, que é de facto um pouco melhor do que as outras mas que, devido ao tamanho, começa a ser difícil de controlar. 
Foram cinco aulas seguidas desde as 8.15 até às 13.05. Difícil, muito difícil e eu já não sou um novato. A idade e sobretudo os quase 34 anos de aulas já pesam há muito e cada vez são mais penosos. 
No ano passado, atingi o número recorde de turmas e alunos: 8 turmas, mais de 200 alunos. Fui expressando o meu descontentamento pelos sofás da escola e este ano fiquei com apenas 6 turmas e cerca de 150 alunos... 
Não me adianta queixar mais. A escola e o Ministério só de obrigados voltarão aos tempos, não muitos recuados, nos quais os professores com a minha idade e o meu tempo de serviço iam sendo colocados em horários com menos turmas e serviços mais dispensados do contacto com os alunos até serem devidamente reformados. 
Agora o futuro é mais negro, bem mais carregado. As baldas, “os  cargos” são só para os amigos e para quem se sabe mexer ou está verdadeiramente doente. Eu não reúno nenhum dos requisitos. 
O futuro está carregado como o tempo que faz lá fora. 
Os primeiros dias de março trouxeram o Inverno de outros tempos e que ainda não se tinha visto este ano. 
Chove intensamente desde que cheguei a casa. 
Será o último fim de semana ainda não sobrecarregado antes das férias da Páscoa. Daqui a pouco mais de uma semana, será o sufoco da correção dos testes e do lançamento das notas nas grelhas, os relatórios, o trabalho de Direção de Turma e toda a tralha que se costuma inventar para afligir mais os professores. 
Calma que não é para todos! Há muitos que escapam a este lufa lufa de final de período, sobrando para os outros, os que têm as turmas, as disciplinas mais complicadas, as direções de turma e não têm cargos nem outras benesses. 
Vou ver se descanso um bocado. Segunda-feira volto às aulas que os alunos na sua maioria já não suportam. Nem eles, nem eu. 
Eles estão novos e frescos. A maioria trocará de professores até ganhar algum gosto e encarreirarem ou desistirem para sempre. 
Eu mantenho a esperança (mais a ilusão) de que as coisas mudem e melhorem antes ainda de eu ir para a reforma ou ficar doente. Trabalhamos no fio da navalha. Um trabalho insano, esgotante, frustrante, viciante, que gostava de ter a possibilidade de abandonar, porque não posso alterar, gerir como gostava de fazer, como deveria ser, sem este confronto permanente com Ministérios, Direções, alunos desmotivados em rota de colisão com um ensino desusado, antiquado, desfasado das necessidades, da realidade da sociedade contemporânea. 
Resta-me tentar manter a saúde física e mental para responder às restantes responsabilidades pessoais, familiares e sociais. 
O título foi-me me sugerido pelas palavras de Guterres sobre o massacre de Goutha, na Síria. Como tudo é relativo...

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